![](https://entrelacosdocoracao.com.br/wp-content/themes/entrelacos/img/point.png)
Em mãos o livro HISTÓRIA DOS SABORES PERNAMBUCANOS, de Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti (Recife, Fundação Gilberto Freyre, 2a. edição, 2009, 359 pp.), – gentil oferta de seu esposo, o dr. José Paulo Cavalcanti Filho, ele, também, autor do livro ADEUS PENDERAMA E OUTROS ESCRITOS (São Paulo, Ateliê Editorial, 2007, 216 pp.), – onde, logo no começo, encontro referência a uma lapada de cachaça (p. 24) dentro da abordagem dos pratos típicos da zona sertaneja.
O que me desperta o interesse é o termo lapada, que me fez recordar, com saudade, aliás, a figura de José Antonio de Moura, motorista de táxi na praça de Itabaiana, indo e vindo a Aracaju diariamente, durante anos e anos, conversador, animado e às vezes, mal criado, em cujo veículo, em tempos idos, muito viajei, cujo apelido, além de esconder o nome, foi marca registrada: Lapada.
De Lapada, mais velho que eu uns cinco anos, mais ou menos, me recordo desde criança, morando ou trabalhando na casa de Francisquinho Tavares, na Praça da Matriz, pai de Zeca do Crediário. Papai, tivesse por aqui, poderia explicar melhor, porque foi dele que ouvi uma história interessante, protagonizada por Lapada, quando ainda era rapaz novo. Na casa de Francisquinho Tavares, egresso de velhos tempos, agregada a família, morava uma filha ou neta de cativos, já em idade avançada. Teria ela encomendado a Lapada à compra de uma pasta dental. Lapada, propositadamente, adquiriu uma pasta de creme de barbear e passou para a boa velhinha, cujo apelido está registrado nos cadernos em que meu pai anotava as datas de morte, ou seja, Uil, falecida em 22 de agosto de 1969. A velhinha usou o creme de barbear como se fosse pasta de dente, até que, inconformada com o sabor, reclamou a alguém da família, circunstância que proporcionou a divulgação da presepada de que estava sendo vítima.
Morando, quando juiz de direito das comarcas de Nossa Senhora da Glória, e, depois, de Campo do Brito, na Praça da Santa Cruz, durante uns quatro anos, bem próximo a praça de táxi ali situada, vi Lapada com constância. Helder era bem pequeno, e, numa cena de correr pelos canteiros da praça, pensou que Lapada, que lhe deu algum psiu, em tom fechado, fosse o guarda, isto é, o guarda da praça, passando a temê-lo, até que o medo acabou quando ganhou uma espiga de milho cozido, oferenda que foi reiterada em ocasiões posteriores, os dois no batente da porta.
Lapada era estouvado, de explosões momentâneas, ocasião em que fechava a cara, dando a entender que se encontrava irritado, deixando da boca escapar muita peste. Em uma dessas ocasiões, ia de Aracaju a Itabaiana com um aero-willys bem fuçado. Foi parado pela Polícia Rodoviária Federal, sob a alegação de que estava a mais de oitenta quilômetros por hora. A sua reação foi imediata. Entregou a chave do carro aos policiais, dizendo: tome, se esta égua der mais de quarenta, é de vocês. E saiu, calmamente, caminhando na beirada da rodovia.
Lembro-me de Lapada na condição de goleiro do Itabaiana. Lembrança vaga. Sim, goleiro. Mas, há muito tempo. Acho, sem certeza absoluta, que Lapada substituiu Lima, quando esse foi jogar no Confiança, na década de sessenta do século passado. O que me ficou na mente é que, na narração dos locutores de rádio, quando o Itabaiana jogava em Aracaju, é que o goleiro do Itabaiana tinha o nome de Moura. Ora, quem é esse Moura se o goleiro do Itabaiana era Lapada? Mas, era Lapada mesmo, cujo apelido talvez não tenha soado bem para ser divulgado, sobretudo em se tratando de um time do interior, razão que deve ter inspirado alguém da diretoria a divulgar, na escalação do time, o seu sobrenome. Foi rápida a sua passagem como goleiro.
Com Lima, aliás, também ocorreu a mesma coisa. O apelido, em Itabaiana, era Enfinca, ou Infinca. Conheci, menino, uma senhora da rua, bastante nova e maltrapilha, com a cara de Odete Lara quando moça, com esse apelido, a pedir esmola nas ruas. Não sei se o apelido de Lima – que está bem vivo e pode falar melhor que eu – tem alguma conexão com essa mulher, que habitava as ruas de Itabaiana da década de cinqüenta do século passado. A diretoria do Itabaiana, em jogo em Aracaju, passou para a imprensa a escalação do time, usando o nome de Lima, seu sobrenome, Manoel Lima, salvo engano, a fim de evitar a divulgação do apelido. Só que, no caso de Lima, – que foi goleiro, e dos bons, por muitos anos, jogando no Confiança, principalmente, em um dos melhores times deste, e, depois, no Sergipe, onde quebrou a perna, chegando a retornar ao Itabaiana, – o apelido foi abandonado, o que não ocorreu com Lapada, que de, dono de bar, que pertencera a Antonio Lima, na Praça da Matriz, trabalhou algum tempo como motorista em Carmópolis, em serviço ligado a Petrobrás, para, depois e enfim, envergar a vestimenta de motorista de táxi, no trajeto diário Itabaiana-Aracaju e vice-versa.
Lapada, com seu gênio estouvado, não passaria incólume pela vida. Teve a infelicidade de aparecer uma doença danada, da gota serena de forte, como ele poderia ter reconhecido e proclamado, que lhe tirou o sossego, em um tratamento contínuo e permanente, cuja notícia circulava, até que, minando-lhe as forças, muito tempo depois o levou para o Cemitério das Almas de Itabaiana, acompanhado o sepultamento por uma multidão de amigos e conhecidos. Não fui ao seu enterro. Tinha audiência naquela tarde, que se prolongou, audiência da qual não consegui me livrar. Enviei cartão para a viúva, recebendo, depois, um bonito santinho, divulgado na missa de sétimo dia, que tenho guardado em algum livro.
Lapada é termo que encontro, com certa freqüência, no romance ROLIÚDE, do pernambucano Homero Fonseca (Rio de Janeiro, Editora Record, 2007, 238 pp). Significa, em nível de dicionário (Michaelis), o mesmo que lapa, que é igual a bofetada, lambada, ou seja, chicotada ou pancada com objeto flexível, paulada, sova, dose ou gole de bebida alcoólica, pedaço comprido de alguma coisa. Quem batizou José Antonio Moura com tal apelido deve ter tido bons motivos, pela conduta de Lapada, que o filho não reiterou, senão teria sido chamado de Lapadinha. Lapada foi o primeiro e único, portanto, apelido que bem sintetiza sua conduta, quando ainda menino.
Quando a história dos motoristas de táxi e de outros veículos de Itabaiana for escrita, começando pelo pioneiro João de Balbino, que, quando convocado para uma viagem, de importante que era, almoçava na cabeceira da mesa, o nome de Lapada estará em uma posição confortável, ao lado de pessoas sisudas, como Azer da Saboaria, e outras, mais folclóricas, como Zé de Melquíades que animava o carnaval de sujo com suas fantasias extravagantes; como Manoel de Jason, cujo caminhão quase não saia do lugar, sendo vencido, na velocidade, pelo carrinho de Gabriel professor; e, também, como Mamão Verde, na adoção da cor verde ao seu veículo, o que redundou no apelido que nunca o deixou em paz, entre outros. E aí, quem sabe, outras tiradas de Lapada poderão vir a lume na caracterização perfeita do seu gênio.
HISTÓRIA DOS SABORES PERNAMBUCANOS foi apenas um pretexto para a gente matar a saudade de Lapada, que, ressalte-se, talvez não tivesse conhecimento do significado do termo que lhe deram por apelido. Acredito no talvez
(*) [email protected]
Publicado no Correio de Sergipe