dom seb ecumenismo

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Com o tempo da Páscoa, caminhamos para a Festa de Pentecostes, a celebração do derramamento do Espírito, festa de comemoração da difusa presença de Deus em todo o mundo criado. Em Gênesis, logo no início, diz-se que o “Espírito de Deus pairava sobre as águas” do imenso abismo primordial, imagem do caos primitivo. É do Sopro, da energia divina, que toma forma o universo. Logo no capítulo segundo, Deus faz surgir a humanidade, tirando-a da matéria preexistente, do “barro da terra”, e lhe infunde o Espírito com Seu próprio sopro. A reflexão sapiencial na Bíblia desenvolve o tema da presença do Espírito divino no conjunto da criação, “o Espírito enche o orbe da terra”. Por isso, no Novo Testamento, o Espírito é o sopro de Deus que impulsiona a missão de Jesus à universalidade das nações do mundo. O sentido da missão cristã é que o mundo seja recriado, os povos passem a viver congregados, “como se falassem uma só língua” (cf. At 2) e em paz (cf. Is 2; Ef 2). Justamente o contrário do que se imagina em Babel (“confusão”), quando a unidade é forçada pela imposição dos impérios opressores (cf. Gn 11).

Foi por isso que se escolheu a semana precedente a Pentecostes para orar e celebrar a unidade cristã. É um convite a que todas as Igrejas, que se reconhecem em Jesus, tomem consciência mais forte de que n’Ele temos o fundamento de nossa unidade profunda. N’Ele já somos um, apesar de nossa desunião aparente, e este é o desastre: Deus nos oferece a graça da unidade, em Seu único Espírito, e nós Lhe opomos obstáculos para que essa graça se manifeste em toda a sua plenitude. Quando, então, falamos em Ecumenismo, referimo-nos ao movimento de diálogo em vista de revelar a unidade da Igreja. No Brasil, a cada ano, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs convida todas as Igrejas a orar, estudar e promover o diálogo. A Semana da Unidade Cristã é como uma prolongada vigília, entre a Festa da Ascensão e a de Pentecostes, uma semana inteira, quando nos voltamos para o Espírito Santo, para nos dispor a que o Vendaval divino nos arrebate na direção da unidade pela qual Jesus orou intensamente em sua Oração Sacerdotal, nas vésperas de Sua condenação à morte (cf. Jo 17).

Diversidade, diferenças, discordâncias, e até eventuais conflitos, não são problema, devem ser tidos como algo absolutamente normal, pois diversidade é o próprio jeito de ser da criação e da vida. A natureza é sinfonia de múltiplos e diferentes instrumentos, em vista de produzir a harmonia do conjunto. A riqueza da diversidade é chamada a resultar em unidade, tanto na Igreja, como na sociedade. Anormal é que as diferenças não levem à unidade, mas provoquem separações e até adversidade. Diversidade, sim, adversidade, desunião, separação, nunca. Assim é que deveria ser.

Já no próprio Novo Testamento, é possível constatar que a Igreja nascente não era uniforme, mas uma comunhão de comunidades diversas entre si: umas mais marcadas pela cultura judaica, outras, pela cultura gentia; as comunidades em Jerusalém, na Galileia, em Samaria, na Síria, tinham peculiaridades, já eram diferentes entre si e mais ainda daquelas que se foram formando na Grécia, em Roma e no Ocidente. Na Inglaterra, por exemplo, por vários séculos as

comunidades se inculturaram no jeito de ser do povo celta, bem diferente de Roma; as Igrejas africanas e do Oriente também seguiram seus próprios caminhos e, ao longo da história, têm guardado evidentes diferenças: na maneira de evangelizar, na acolhida da cultura de diferentes povos, na maneira de organizar os ministérios e de celebrar a liturgia e até mesmo na formulação de doutrina. Os evangelhos e os demais escritos apostólicos já mostram essa liberdade quando oferecem diferentes apresentações do mistério de Jesus, todas complementares, é certo. A partir do século IV, começam a acontecer cisões mais graves  permanentes, por motivos políticos e doutrinais. Não é por acaso, a Igreja vai-se envolvendo na tarefa de cimentar a unidade do Império.

Buscar a unidade, portanto, não deve ser imaginado como retorno a um passado ideal que  nunca existiu, um passado idealizado, como se a Igreja cristã tivesse começado  de maneira uniforme, inteiramente harmoniosa, sem significativas diferenças e conflitos. De fato, durante o primeiro milênio, a grande Igreja “católica” se constituía de Igrejas locais, autônomas, ciosas de suas peculiaridades, encarnadas em povos culturalmente diversos, e, ao mesmo tempo, bem conscientes de sua unidade profunda em Cristo e em Seu Espírito, formando, desse modo,  uma “comunhão” ecumênica que já se manifestava em tensões e esforço de unidade, em sínodos e concílios. A pretensão de uniformidade e centralização só aparece fortemente no século XI, com o papado de Gregório VII e a afirmação da supremacia da Igreja de Roma e do clero. Antes, o princípio era aquele formulado classicamente por Santo Agostinho: “No essencial, unidade; em coisas secundárias, liberdade; em tudo, porém, caridade”.

No século XIX, infelizmente, em ligação com o colonialismo e a dominação dos vários continentes pelas nações europeias, desencadeou-se a grande “onda missionária”, levando junto com o Evangelho, a dominação dos povos, cujas consequências se podem ver até hoje. Era a consumação do que se havia começado desde o século XV, com as grandes viagens intercontinentais.  Dizem historiadores que, naquela época, a situação técnica e de bem estar do campesinato africano estava no mesmo patamar do campesinato europeu. Dali por diante, e até hoje, a África tem sido destroçada e destruída pelo Imperialismo dos países mais ricos. A tal “onda missionária”, porém, tem levantado progressivamente uma pergunta fundamental: como anunciar o Evangelho da salvação, quando cada denominação anuncia um Cristo próprio e diferente? Em quem confiar? Além do conflito que surgia naturalmente entre as pessoas  supostamente “evangelizadas”, cada qual defendendo a “imagem” de seu próprio Cristo. Isto provocava confusão e escândalo entre os “gentios” e, por isso, até governos instavam os cristãos a se porem de acordo. A pressão dos movimentos missionários e dos movimentos de juventude foram provocando a Cristandade e chegou-se à fundação do Conselho Mundial de Igrejas, como órgão de expressão da diversidade cristã e, mediante o diálogo, órgão de promoção da unidade da Igreja, ao mesmo tempo em que se tomava mais consciência da tremenda mistura entre “Cristo” e “Igrejas coloniais”.

Fundou-se o CMI em 1948, como grande fórum internacional e intereclesial, valioso instrumento para chamar as Igrejas à unidade enquanto se voltam umas para as outras e colaboram entre si para servir o mundo em nome de Jesus. Memoráveis têm sido suas assembleias, manifestação da marcha do Movimento Ecumênico pelo mundo afora, sem falar das iniciativas em favor da justiça e da paz e em defesa dos povos oprimidos.

Fala-se de que hoje estamos em “inverno ecumênico”. Já não parece haver mais o entusiasmo que se vivia antes, com as Igrejas e a grande rede de organizações paraeclesiásticas a multiplicar iniciativas em prol da unidade. Parece até que vamos em direção contrária. A sociedade passa por profunda e generalizada crise, em seus vários aspectos: ecológico, econômico, social, político e cultural, religioso e espiritual. A própria civilização está em crise. Todos os valores e paradigmas se acham abalados, como que entre parênteses. Em nosso país, a crise global se agrava pelo acelerado processo de urbanização. Enquanto a Europa passou da roça para a cidade em lento processo de séculos, nós aqui temos tido só sessenta anos para passar por essa radical transformação. O povo se sente perdido, órfão, já não sabe mais o que vale e o que não vale, e nós sentimos como se se ergarçasse o tecido social, daí, a explosão de revolta e violência a que estamos sendo submetidos(as), todo o mundo em casa e nas ruas com a sensação de um “sofrimento difuso” e vivendo sob a sombra do medo a cada dia. Estamos em meio a gigantesca onde de desagregação, que provoca nas pessoas profunda crise de identidade e frustração. Como explicar de outro modo a praga da droga que se alastra como mancha d’óleo?

Na Igreja cristã, parece que vamos na direção inversa à aquela que movia as gerações entre as duas grandes guerras mundiais. Então, ansiava-se por unidade e reconciliação. Agora, multiplicam-se as mais diversas e contraditórias iniciativas de “evangelização”, afirmam-se com força as diferentes identidades e temos a assombrosa sensação de que o tecido do Cristianismo está a rasgar-se ainda mais em múltiplos pedaços e até pequenos retalhos. A busca de resultados, como se fôssemos empresas; o condicionamento da sociedade de consumo; a ideologia de mercado influenciam-nos fortemente a parecerem dominar a Igreja de Cristo, a ponto de degradá-la ao charlatanismo, à exploração da credulidade pública, à exploração da boa fé das pessoas, de modo que cada grupo e suas lideranças parecem sequiosos por espaço na sociedade, espaço ideológico, social, político, de prestígio pessoal e, particularmente, financeiro. Também a fé dá a impressão de ser tratada como mera mercadoria “religiosa”. Não é de admirar que, nesta situação, a busca da unidade tenda a arrefecer, cada grupo a agarrar-se à própria fatia de mercado. Pode soar sem sentido falar de unidade da Igreja e buscar promovê-la numa época em que a fé cristã parece dissolver-se em amplo e diversificado quase ao infinito “movimento religioso”, sem maior compromisso com a unidade do Corpo de Cristo, o qual se funda na comunhão entre suas diversas expressões e com a perspectiva de transformação do sistema social dominante, de acordo com os critérios bíblicos, claramente indicados pelos profetas, por Jesus e pelos Apóstolos.

É nestes dias de profunda crise que vamos celebrar mais uma vez a Semana de Oração pela Unidade Cristã, à maneira de Dom Quixote em luta com moinhos de vento. Como então viver o Movimento Ecumênico? Esta pergunta poderia ainda ser formulada de outra forma, bem mais radical: Como ainda crer em Jesus que proclama a Trindade divina, perfeita unidade na diversidade, como sendo nosso princípio e modelo (cf. 1Jo 1-4)? Como manter a memória da Oração Sacerdotal e ser fiéis ao mandamento que aí está contido: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos(as), se tiverdes amor uns pelos outros(as) (Jo 13, 35)? Orar e trabalhar pela unidade da Igreja e da humanidade tem tudo a ver profundamente com nossa fé em Jesus. Do contrário, desistamos do Cristianismo. Como, então, buscar viver o Movimento Ecumênico hoje?

Primeiramente, devemos, afinal, considerar normal a diversidade, tanto no âmbito da sociedade, quanto na religião e na Igreja cristã. São caminhos culturais pelos quais  pessoas e povos se aproximam de Deus, o pluralismo veio para ficar. Quem sabe, o que temos de achar é novo ponto de partida, para além do “religioso”, voltando ao sentido primitivo e secular do termo “Ecumenismo”. Na Antiguidade romana, a “oikouméne” era o mundo habitado, compreendido naturalmente como o mundo contido nas fronteiras do Império. Hoje deveríamos partir da intuição contida aí e alargar o sentido do termo enquanto aprofundamos sua abrangência: “oikos” (casa) e “méno” (permanecer). Para além do império, é o mundo, o orbe da terra, a “casa comum” onde todos os povos e todas as pessoas têm direito a permanecer.

Por isso, não me convence a distinção entre “ecumenismo” (diálogo entre Igrejas cristãs) e “diálogo inter-religioso” (relação com outros credos). Parece-me que o ponto de partida contém um equívoco de raiz.  Na verdade, o ponto de partida não deve ser a religião, nem as ideias, nem muito menos as ideologias religiosas, mas a Vida. Assim, rompemos com a perspectiva idealista e partimos do chão concreto que é a vida das pessoas e dos povos. Costuma-se afirmar que a vida é ecumênica por si mesma: temos todas as pessoas as mesmas necessidades básicas, e todas necessitamos umas das outras para viver. Afinal, não é verdade que o coração de Deus ama todas as pessoas e povos igualmente e a todos faz a mesma pergunta, a única que interessa: Você foi capaz de amar (cf. Mt 25)? Não é Ele criador e Pai de toda a humanidade e “que faz nascer o sol sobre bons e maus”. O ecumenismo de Deus é, sem dúvida, aquele mais amplo, pois cria, mantém e salva enquanto “amigo da vida”, como diz o Livro deuterocanônico da Sabedoria. O grande profeta e bispo, Dom Helder Camara assim definia o que seja Ecumenismo: “Quando nós das Igrejas cristãs resolvermos assumir realmente as preocupações de Deus, que são as questões da vida de Seu povo, então vamos sentir vergonha de nossas divisões, pois nos parecerão coisa tão pequenina”. Como pensar e viver o Ecumenismo hoje? Abraçar e promover a causa da unidade e viver a mística do Ecumenismo, ao reconhecer que todas as pessoas e povos têm direito a “permanecer na casa comum”, a meu ver, incluem quatro passos, não necessariamente sucessivos, mas que se implicam reciprocamente em ritmo cumulativo.

Tudo começa quando travamos relações interpessoais, de conhecimento recíproco e amizade. Distâncias necessariamente se encurtam, fantasmas se dissolvem e preconceitos e estereótipos caem por terra. O segundo passo é interessar-nos umas pessoas pelas outras, reciprocamente, comunicar-nos, trocar notícias e informações, isto nos provoca a interceder uns por outrem e em conjunto; na verdade, é dar prosseguimento à Oração de Jesus e compartilhar nossa experiência espiritual de discípulos e discípulas d’Ele. Daí, por diante, já se torna possível trabalhar em parceria, com iniciativas conjuntas em favor de pessoas e categorias sociais pobres, marginalizadas e excluídas, mediante ações de solidariedade e de luta pela derrubada das estruturas injustas da sociedade, e de cuidado por proteger, preservar e renovar a vida no planeta, garantia da paz entre pessoas e povos. Finalmente, a partir do mútuo conhecimento e do estabelecimento de nova relação fraterna, da oração e da ação em comum, teremos clima para conversar e dialogar sobre a própria maneira de crer e de formular a fé, e discutir, agora já com humor, eventuais diferenças de formulação, tantas vezes, diferenças mais de aparência e de forma que de conteúdo profundo.

A questão de fundo, o que pode tornar possível esses quatro passos é o seguinte: qual o foco que nos orienta na caminhada da fé e da missão: os interesses pessoais, os interesses corporativos das instituições a que pertencemos, os interesses da religião, ou a vida das pessoas e dos povos? Qual o foco que nos deve guiar na autocompreensão da Igreja cristã: a liturgia, os rituais, a doutrina, a teologia, ou a Diaconia da vida, a saber, o serviço da Igreja às pessoas e à sociedade, para que o mundo se transforme e se aproxime daquilo que Deus sonha para sua criação? O profeta Isaías e a Epístola aos Efésios têm a coragem de dizer que o estabelecimento da paz entre os povos é a realização da salvação. De fato, para Jesus, anunciar o Reino é anunciar o “Xalôm” como plenitude dos dons da vida, o bem-viver, condição de felicidade, desde o aspecto ecológico-econômico até a alegria de livremente louvar e bendizer o Criador que nos reúne em Sua aliança universal.

Se a Diaconia, o serviço de Cristo ao mundo, mediante a generosa entrega de nossas vidas, na perspectiva da solidariedade, da luta pela justiça, do cuidado e do “Xalôm” (felicidade), for o foco de nossas preocupações e ações, então, novas relações entre nós se tornam possíveis; vamos  interessar-nos uns por outrem, orar em conjunto, e interceder pela obra de Deus no mundo já não nos será difícil; trabalhar em parceria , tais companheiros e companheiras, já não soará estranho; e até dialogar e conversar sobre diferenças teológicas e doutrinais chegará a parecer normal, pois conservar a unidade e a comunhão será inteiramente possível, mesmo contando com toda nossa diversidade, a qual começaremos a tratar com simplicidade e até humor.

A unidade será possível, sim, mas só sobre a amizade, a oração e a ação comum. Como dizia Dom Helder, será possível porque “estaremos assumindo as mesmas preocupações de Deus, que são as questões da vida de Seu povo”, de nosso povo, do qual fazemos parte e que é parte de nós. Ecumenismo não é uma tarefa a mais, é apenas expressão concreta de nossa espiritualidade no seguimento de Jesus. Ecumenismo é simplesmente expressão de que cremos em Cristo.

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

Imagem  enviada  pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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