Marcelo Barros 9 de fevereiro de 2010

Quando, no Brasil, o Carnaval se aproxima, em cidades grandes ou pequenas, blocos carnavalescos fazem ensaios para a festa, as pessoas preparam fantasias e se sucedem bailes e brincadeiras como gritos antecipadores da festa. Há pessoas e grupos religiosos que vêem nisso mera alienação ou até tentação do diabo. Sem dúvida, ocorrem abusos, seja na exploração de um erotismo meramente comercial, seja no uso indevido de bebidas e drogas. Também se ressente, em algumas manifestações do Carnaval, um aumento da violência que ameaça certos fenômenos de massa. Mas, mesmo com estes riscos, toda festa, mesmo a mais aparentemente mundana, reúne pessoas em uma expressão de alegria e tem, por isso, uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.

De um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Conforme o quarto evangelho, o próprio Jesus antecipou a sua hora de agir e sua Páscoa. Transformou água em vinho simplesmente para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2). Jesus disse também que os tempos do reinado divino vêm ao mundo qual uma música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, uma festa inspirada pelo Espírito, em meio à travessia de tantos desafios.

Cada pessoa e comunidade marcam a vida pela cadência das festas. Cada ano, o aniversário recorda o dom da vida. Conquistas importantes, como conclusão de um curso, obtenção de um novo trabalho e casamentos são celebrados com festas. Todo país tem festas cívicas e cada religião, festividades litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito.

Na Bíblia judaica, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. (…) “A rainha Micol, filha de Saul, viu o rei Davi dançando e o criticou:´Hoje, o rei de Israel se desnuda diante das servas de seus servos, como se fosse um qualquer´. Davi respondeu a Micol: ´Diante de Deus que me escolheu como chefe do seu povo, sempre vou fazer festa e dançar”. E a Bíblia diz que, desde aquele dia, a rainha ficou estéril e não teve mais filhos (2 Sm 6). Para o texto, é como se a insensibilidade de Micol para a dança a tivesse tornado estéril. Ao contrário, Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo.

Vários salmos aludem à dança como forma de oração. O salmo 30 diz: “Transformaste o meu luto em dança de festa” (v. 12). Outros salmos cantam: “As pessoas justas se alegram diante de Deus e dançam de alegria” (Sl 68, 4). “Louvem o seu nome com danças” (Sl 149, 3). “Louvem-no com danças e tambor” (Sl 150, 4).

Apesar disso, parece que a dança nem sempre foi muito valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas mais recentes, principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”.

A dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afro-descendentes. Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.

Durante muito tempo, no Ocidente, as Igrejas não a valorizaram e até hoje ainda a usam pouco. Fora do Cristianismo, as formas mais conhecidas e espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.

Na tradição judaica, o grupo dos chassidistas, movimento espiritual judaico nascido no norte da Europa, no início dos séculos modernos, valoriza muito a dança como caminho espiritual. Um conto chassídico do século XVII diz que um grande Rabino resolveu visitar uma aldeia da Rússia. Aquela visita era importante para a comunidade judaica. Cada pessoa pensava nas muitas perguntas que queria fazer ao rabino. Quando, por fim, ele chegou, estavam todos reunidos, preocupados com as perguntas que lhe iriam fazer. O Rabino entrou e sentiu que havia uma tensão. Durante algum tempo, não disse nada. Limitou-se a entoar baixinho uma melodia de sua tradição. Dentro de pouco tempo, todos cantavam junto com ele. Começou a dançar e, logo, a comunidade inteira dançava junto. Todos se envolveram na dança e nos cânticos. Desse modo, cada pessoa ficou de novo inteira e cada uma sarou as falhas que não lhe deixavam compreender as coisas como eram. Depois de dançar por algum tempo, o Rabino, aos poucos, foi parando, olhou as pessoas e disse: “Espero ter respondido a todas as perguntas”.

Hoje, em muitos grupos, revaloriza-se a dança sagrada. Lamentavelmente, este modo de falar pode separar o sagrado e o profano. Como toda atividade humana, a dança também pode se tornar instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana e humanizadora, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e da comunidade. Pode ser sinal da bênção divina e instrumento de cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura. Um cântico da Idade Média cantava: “Dancem, estejam onde for. Entrem no ritmo libertador. Dancem a vida e o amor. Como até na cruz eu tive de dançar e venci a amargura e o desespero da dor. Tornei-me assim de toda a dança, a fonte e o primor”.

(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]