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Papai, a manhã inteira, alardeando que estava em jejum, numa cantilena que ano a ano se repetia. Só ele. Os demais membros da família, eu, hein, de barriga cheia. Mamãe, sozinha,  numa lentidão cadenciada e silenciosa, cuidava do peixe, do leite de coco, do feijão de coco, do arroz de coco, e, nesse dia, por ser especial, do espaguete, que a gente, à época e até pouco tempo atrás, conhecia por macarrão. Além dos diversos anúncios do jejum, ainda ouvíamos o discurso de papai no sentido de que, naquele dia em especial, o que fazia mal era o que saia da boca, não o que entrava, segundo sermão que ouviu em algum lugar, ou na igreja, ou pelo rádio.  

Meio dia, a comida era servida. Aí, sim, papai se esbaldava. Desprezando o garfo, pires com o molho de pimenta, laranjas descascadas, ia ao fundo de cada prato, misturando tudo num bolo só, que levava à boca com a mão, com prazer, com fome, porque o almoço da sexta-feira da Paixão, naqueles tempos, era o melhor do ano. Pelo menos, lá em casa. Depois, era o sono, o quarto de porta fechada, o silêncio que instintivamente a gente tinha de fazer, porque, de barriga cheia, o patriarca dormia profundamente. Quando se acordava, o papo do jejum e do peixe desaparecia. O roteiro agora indicava a ida à igreja no período da tarde.

Essa sexta-feira da paixão, assim, como narrado, permaneceu na minha cabeça ano a ano, porque, de todos os almoços, era o mais robusto e diferente, anunciado semanas antes, quando a compra do peixe começava a tomar conta da preocupação de papai. Outro fator que me fez lembrar sempre era a verdade de que, tirando a sexta-feira da paixão, em nenhum outro dia se comia peixe lá em casa. Ademais, nem a galinha, no dia do Natal, superava o almoço da sexta feira da paixão.

Tudo ficou só nos escombros da memória. Não há mais sexta-feira da paixão como as de antigamente. Cada filho partiu para seu destino próprio. Papai se foi e mamãe, tantos anos depois, se dispôs, enfim, a fazê-lo companhia. Estão juntos outra vez. Nós, filhos, em suas casas, cercados de filhos, a maioria recheado de netos. Em mim, a lembrança forte e viva,  as cenas se passando, na expectativa da hora do almoço da sexta-feira da Paixão, que nunca chegará, a alegria de poder lembrar e a tristeza das despedidas já vividas. Afinal, é dessas lembranças que a saudade se alimenta. (19 de março de 2016.)

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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