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Meu sentimento do mundo me diz que vivemos dentro de uma violência mundial sistêmica. Seria longo enumerar todos os tipos de violência. Mas ela é tão globalizada que o bispo de Roma, o Papa Francisco  afirmou por três vezes, que já estamos dentro da terceira guerra mundial. Não é impossível que a nova guerra-fria entre os USA, Rússia e China acabe provocando um conflito nuclear.

Se  esta tragédia ocorre,  será o fim  do sistema-vida e da  espécie humana. Este estado de permanente beligerância se deriva da lógica do paradigma civilizatório que foi lentamente se formando durante séculos até chegar ao seu paroxismo nos nossos dias: a ilusão de o ser humano ser um “pequeno deus” que se coloca sobre as coisas para dominá-las e acumular benefícios, à custa da natureza e de nações inteiras. Perdemos a noção de nossa pertença à Terra e de que somos parte da natureza. Essa consciência nos levaria a uma confraternização com todos os seres desse belo planeta.

É urgente uma nova relação para com a Terra e para com a natureza, feita de sinergia, respeito, convivência, cuidado e sentido de responsabilidade coletiva.

Esta relação convivial sempre esteve viva em todas as culturas, do Ocidente e do Oriente, especialmente, em nossos povos originários que nutrem para com a Terra profundo respeito.

Na nossa cultura temos a figura paradigmática de São Francisco de Assis, atualizada pelo bispo de Roma, Francisco, em sua encíclica Laudato Si: cuidando da Casa Comum. Proclama o poverello de Assis “o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia…para ele qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe”(n.10 e 11). Com certo humor recorda “que São Francisco  pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto para as ervas silvestres crescerem” (n.12) pois elas a seu modo também louvam a Deus.

Esta atitude de enternecimento levava-o  a recolher as minhocas dos caminhos para não serem pisadas. Para São Francisco todos os seres  são animados e personalizados. Por intuição espiritual descobriu o que sabemos atualmente por via científica (Crick e Dawson, os que decifraram o DNA) que todos os viventes somos parentes, primos, irmãos e irmãs, por possuirmos o mesmo código genético de base.  Por isso chamava a todos de irmãos e irmãs: o sol, a lua, o lobo de Gubbio e até a morte.

Esta visão supera a cultura da violência e inaugura a cultura do cuidado e da paz. São Francisco realizou plenamente a esplêndida definição que a Carta da Terra encontrou para a paz: ”é aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 ).

O Papa Francisco parece ter realizado as condições para a paz que por todas as partes prega e pessoalmente irradia. Ele expressou emotivamente um pensamento que sempre volta na encíclica: ”tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também com terna afeição, ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra”(n. 92).

Num outro lugar, encontrou a seguinte formulação, agora crítica: “É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença”(n.52)

Desta atitude de total abertura que a todos abraça e a ninguém exclui, nasceu uma imperturbável paz, sem medo e sem ameaças, paz de quem se sente sempre em casa com os pais, os irmãos, as irmãs e com todas as criaturas.

No lugar da violência coloca os fundamentos da cultura da paz: o amor, a capacidade de suportar as contradições, o perdão, a misericórdia e a reconciliação para além de qualquer pressuposição ou exigência prévia.

Ao abordar o tema da paz em sua encíclica. o bispo de Roma,  Francisco, repete o que Gandhi e outros mestres já disseram: ”a paz não é a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado com a ecologia e com o bem comum, porque quando autenticamente vivida,  reflete-se num equilibrado estilo de vida, aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida; a natureza está cheia de palavras de amor”(n.225). Num outro tópico assevera: ”a gratuidade nos leva a amar e a aceitar o vento, o Sol e as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle; assim podemos falar de uma fraternidade universal”(n.228).

Com esta sua visão da paz e da gratuidade, ele representa um outro modo de ser-e-de-estar-no-mundo-com-os-outros, uma alternativa ao modo de ser  da modernidade que é estar fora  e acima da natureza e dos outros e não  junto com eles, convivendo na mesma Casa Comum.

A descoberta e a vivência desta irmandade cósmica nos ajudará a sair da crise atual, nos devolverá a inocência perdida  e nos  fará ter saudade do paraíso terrenal cujos sinais podemos antecipar.

Obs: O autor é articulista do JB on line e escreveu: Francisco de Assis e Francisco de Roma: a nova primavera na Igreja, Mar de Ideias, Rio 2015.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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