Primeira Parte: Sismos e Tsunamis 

Ex-Director do INETI (Coimbra)
Escritor [email protected]

…Lá fora, o mau tempo assistia pelas vidraças aos meus pensamentos e o vento, num apelo à razão, fazia ranger as árvores e atirava a folhagem amarelecida contra a janela. Nunca tinha pensado que os elementos da Natureza pudessem preocupar-se com a existência humana. A nuvem ardente libertada na erupção da Montanha Pelada, Martinica, sufocou a cidade de S. Pedro e matou cerca de trinta mil pessoas em Maio de 1902, mas foi indulgente com um cadastrado detido nos calabouços da prisão. As monções, os furacões e as inundações do Indo e do Ganges são capazes de ceifar, de uma assentada, dezenas de milhares de vidas, pobre Bangladesh e a Crosta Terrestre tremeu ou tremerá fortemente lá para a China, Japão, Anel de Fogo do Pacífico, Andes e América Central e morrerão muitos outros milhares de pessoas, e os fundos oceânicos terão perturbações repentinas de desnivelamento que formarão tsunamis1 que não deixarão de arrasar zonas baixas de ilhas e cidades à beira mar, fazendo disparar o número vítimas; e de fome, vão continuar a perecer números esmagadores de crianças, adultos e velhos devido à seca que para os lados da Etiópia devassa a vida mas, em África, sucumbirão muitos mais às mãos da malária, da sida e de outras doenças. Contudo, as manifestações de guerra envolvendo a Terra e o Céu não cessarão pelo mundo fora, muito embora Céu e Terra pareçam duas entidades amigas, sob controlo da divina previdência…(Horta da Silva, 2006) 2 .

Desde o dia em que ocorreu o sismo no Haiti, que atingiu a magnitude sete na escala de Richter, tem sido difícil manter-nos apartados das inúmeras imagens e reportagens que tentam mostrar a dimensão concentrada da morte, do caos, da miséria e da indiferença com que a Natureza trata as sociedades, muito em especial as menos favorecidas. Com o advento das tecnologias da informação, estes funestos acontecimentos entram-nos em casa quase em tempo real, emprestando à desgraça uma dimensão que abala os corações mais desprendidos, tragédias ornadas aqui e acolá por factos casuísticos relativos à capacidade de alguém que saiu ileso dos interstícios dos escombros, duas semanas depois de o terramoto se dar. O restabelecimento da normalidade, que já era feita de sofrimento, ostracismo e desdém antes da catástrofe se dar, demorará décadas a repor, mas deixará de ser notícia muito em breve, do mesmo modo que deixou de ser notícia o tremendo maremoto ocorrido no Índico a 26 de Dezembro de 2004, que atingiu a magnitude nove na escala de Richter. Refrescando a memória, este sismo deu origem a uma enorme e potente tsunami que devastou regiões costeiras de Sumatra, Tailândia, Maldivas, Sri Lanka e até países de África, nomeadamente Tanzânia, Somália e Quénia. Em Portugal, as imagens desta catástrofe perduraram um pouco para além do tempo usual, pela simples razão de uma equipa de televisão ter descoberto, numa praia de Banda Aceh, o pequeno Marturis vestido com uma camisola da Selecção Portuguesa de Futebol. Maturis visitou Portugal, e a Federação Portuguesa desta modalidade doou quarenta mil euros para a reconstrução da sua casa, enquanto a Câmara de Paços de Ferreira e Associações Empresarias ofertaram um contentor de mobílias para a nova casa de Maturis. A análise dos registos sismográficos de maremotos e o cálculo probabilístico da eventual trajectória das tsunamis que se deslocam pelos oceanos a velocidades equivalentes às dos aviões comerciais, permitem algum tempo para aviso, facto que impõe sistemas de informação on line e protecção civil organizada, coisa que muito raramente está ao alcance de sociedades débeis. Cabe aqui alertar para o facto, de uma tsunami poder passar imperceptível até perto da costa, onde começa a erguer-se do fundo do mar à medida que a profundidade das águas diminui, razão pela qual a verdadeira dimensão do movimento ondulatório e da energia que trás consigo só é possível verificar quando a amplitude da tsunami se exibe aos olhos do ser humano como se fosse um gigantesco castelo a emergir em crescendo da morte calma da superfície do mar. Considerar tsunami e maremoto como sinónimos é um erro. Nem todos os maremotos dão origem a tsunamis e existem tsunamis que não tem origem em maremotos. Para a formação de tsunamis é preciso que haja alteração brusca da morfologia do fundo do oceano, facto que acontece em muitos maremotos, mas que pode acontecer também, por exemplo, por motivos de deslizamentos submarinos de terras e rocha.
Quando fiz a pós-graduação no Imperial College of Science and Technology (Univ. de Londres), lembro-me de, na primeira aula de sismologia, a turma ser literalmente esmagada com um diaporama que mostrava as ruínas de um vasto conjunto de cidades arrasadas por terramotos, onde se divisava, aqui e acolá, um edifício inteiro ou quase inteiro que emergia da ruína, como se fosse entidade imaculada, que o professor apontava como exemplo a ter em conta para o futuro. Anos depois, visitando a Universidade da Califórnia (Campus de Berkeley), pude observar, ao vivo, os efeitos das ondas sísmicas numa estrutura, estudados em modelos físicos gigantes que mostravam o comportamento dos elementos estruturais e dos materiais às diversas e complicadas solicitações a que eram sujeitos. Os Estados Unidos e o Japão são, seguramente, os países mais avançados no domínio da engenharia sísmica, mas os especialistas que projectam estruturas para zonas de risco sísmico elevado e os empreiteiros que as constroem, muito provavelmente, nunca chegarão a saber se os projectos e os métodos utilizados provaram estar à altura dos fins a atingir relativamente ao terramoto para que foram dimensionadas e, tão pouco, a ganância de viver exclusivamente para o presente permitirá o mérito de reconhecer o esforço de bem construir. E se isto é um axioma relativo ao modo de estar da maioria das sociedades contemporâneas que correm atrás do prejuízo, como o cangalheiro corre atrás do morto, qual é o futuro de países como o Haiti, que abundam por esse mundo fora? O cálculo previsional sobre a data e magnitude de ocorrência de sismos é pouco menos do que ficção, mesmo quando os estudos são apoiados em monitorização e registo contínuo do comportamento de falhas geológicas activas. Para este tipo de eventos, a teoria matemática do caos também deve ser tida como uma tentativa de aproximação, mesmo quando se recorre a modelos sofisticados e a simulações feitas em computador. Por isso, deve-se apostar essencialmente no domínio da prevenção, fixando objectivos baseados em cálculos probabilísticos do risco sísmico. Função do risco sísmico, é indispensável definir normas de construção e de actuação das populações e da protecção civil que, só por si, ajudam a diminuir substancialmente o volume de estragos e consequentemente o número de vítimas. No entanto, é preciso ter em conta que há países que, não obstante estarem atulhados de normalização, comungam do prazer atávico do incumprimento. Estamos, portanto, perante um problema de regulamentação, de informação e, sobretudo, de educação cívica.
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1 Vocábulo de origem japonesa que significa: onda de portos
2 Horta da Silva (2006) – Narrativa introspectiva da personagem Arnaldo Santos no romance “A Última Ponte “.
Obs: A crônica acima nos chegou no dia 14 de fevereiro do corrente ano.
(Continua) Segunda Parte: Ciclones e Deslizamentos de Terra
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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