domseb da encarnação

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Luiz Carlos Ruas morto no Rio de Janeiro por defender dois homossexuais que estavam sendo agredidos

A vida e a Graça estão marcadas por dialética radical: a realidade é simultaneamente dom econquista. O amor é assim, o dom não é proporcional ao jogo da conquista, a pessoa amada só vem ao amor se quiser, ela se entrega, se dá. Receber uma criança que nasce é, do mesmo modo, sentir essa dualidade radical, unificada em única alegria inefável: filho ou filha é totalmente conquista e totalmente dom, surpresa, presente da Vida. Deus é assim também, está todinho como dom, enquanto nós estamos inteiros(as) em luta por conquistá-Lo sob as faces de nosso destino. Esta é a lição mais funda da Encarnação. É o que lemos, por exemplo, em Deuteronômio, na Bíblia, as vitórias de lutas do povo são simultaneamente dom de Deus. A obra de Jesus é a mesma obra do Pai (cf. Jo 5).

Jesus não é apenas “um” homem completo, mas o humano já na esfera da salvação, do “xalôm”, realização da Promessa. O oposto do pecado, é vida plenamente (cf. Jo 10, 10; 15). É o ser humano totalmente em Deus: n’Ele, não só se afirma que a Vida vem de Outro, de outra dimensão, mas se afirma, mais radicalmente, que a própria capacidade humana de responder a Deus só pode ser divina, graça absoluta. É a íntima relação com a Palavra geradora/criadora que torna possível o dom da resposta. Quando se fala de “pecado original”, em última análise, o que se quer dizer é isto: a necessidade absoluta da graça, não só da graça que completa o ser humano, mas também daquela que o salva, que o faz radicalmente capaz de responder, de reconhecer o dom de Deus; é essa incapacidade radical (absurda e impossível de explicar, porque o pecado é essencialmente absurdo, por isso inexplicável, tenebroso, irracional…) que constitui o “pecado radical” (que está nas raízes) de nós.

Por isso devemos superar todo tipo de moralismo. Deus ou as exigências do Evangelho, o que é o mesmo, não é evidente para nós; torna-se percebido diferentemente em cada época, no contexto de cada sociedade. Cada pessoa o encontra em seu próprio contexto de vida. Isto quer dizer que O percebemos pela mediação do mundo, a saber, de nosso “contexto vital”. Ora, a consequência disto é que Deus, em grandíssima escala, terá nossa própria face, será “projeção” de nossa potência e de nossas fraquezas e aspirações. Pensadores como Feuerbach, Marx e Freud têm certa razão quando insistem em que reconheçamos isso. Se há uma maneira de crer que não pode temer reconhecê-lo e até não teme nem mesmo o fim da “religiosidade” e do discurso explícito sobre Deus, é a fé cristã. Pois esta se assenta na proclamação central da Encarnação, quer dizer, de Deus percebido, encontrado, reconhecido e amado no humano. Mesmo que, por hipótese bem remota, se chegasse a perder por completo a “noção de Deus” e já não houvesse necessidade de praticar “religião” na sociedade, a Boa Nova do Evangelho continuaria com toda sua força de crítica profética e de anúncio do “Xalôm” (felicidade), com toda a sua força de mensagem de salvação. É justamente o que queria dizer o grande mártir luterano Dietrich Bonhoeffer, vítima da sanha do Nazismo, quando propunha reinterpretar em linguagem não religiosa os conceitos bíblicos. É que Deus não se “experimenta” em crenças religiosas, mas no ato e no “costume” de amar (cf. 1Jo 3-4).

Se, por exemplo, falamos de “exigências do Evangelho”, alguém pode até nos perguntar: “Quais?”, pois cada qual as percebe necessariamente mediante sua situação existencial no mundo. Não seria muito mais importante analisar as condições objetivas da sociedade, desmascarar certos fatos e estruturas que impedem as pessoas enxergar? Era justamente isto o que fazia Jesus com Suas parábolas (cf. Mc 4) e é disto que o Apóstolo São Paulo nos fala: “Não se deixem moldar pelas estruturas do sistema deste mundo, mas transformem-se profundamente, desde seus sentimentos e pensamentos, para poderem discernir qual é a vontade de Deus”(Rm 12, 2). (Roma, 28. Julho. 1972)

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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