Escritor ([email protected])
Quando terminei a segunda parte deste artigo, dedicada a ciclones e deslizamentos, devolvi o tema à Natureza, na esperança de umas férias ao arrepio de elucubrações acerca dos desentendimentos entre o Céu e a Terra e da Terra consigo mesmo. Assim não entendeu a Natureza ao presentear-nos, uma semana depois, com os grandes deslizamentos ocorridos no Sul de Itália, duas semanas depois, com a catástrofe da Madeira e, por fim, quase três semanas depois, com o grande sismo do Chile, razões bastantes para me sentir obrigado a voltar a olhar para estes assuntos. De mais a mais, desta feita, o mal entrou-nos em casa e, quando o mal nos invade a casa, a dimensão da tragédia agiganta-se e gera tensões nos mais desprendidos. Por isso, é indispensável analisá-la com bom-senso, à luz do estado actual do conhecimento, sem deixar que a esperança caia nos braços dos destroços.
Os deslizamentos no sul de Itália (Maierato e S. Fratelo) foram espectaculares e, graças à disponibilidade de telemóveis com câmara de filmar, apareceram nos noticiários das televisões e em sites da Internet, tal qual a Natureza os proporcionou aos olhos do mundo: enormes volumes de massa deslizando de forma lânguida e indiferente ao reparo das povoações adjacentes. Resultado: pasmo, amedrontamento e impotência de quem testemunhou os acontecimentos, certamente mais preocupado com os bens do que com a própria vida. A avaliar pelas imagens que nos chegaram, estes deslizamentos parecem seguir o figurino daquilo que nos é revelado por um bom livro de Mecânica dos Solos. A superfície de deslizamento parece do tipo circular simples ou múltiplo e a ruptura deu-se face ao súbito incremento da tensão da água nos poros do solo, em razão das intensas chuvadas que caíram na região. Desta feita, a Natureza foi indulgente com a vida humana, muito embora tenha colocado em risco povoações que foram evacuadas. Na vigência do governo do alto-comissário Coronel Pires Veloso, desloquei-me a S. Tomé, acompanhado de dois colegas de trabalho, para avaliar as causas do deslizamento do Rebordelo (dois milhões de m3 de terra) que soterrou uma aldeia que ficou inumada a cerca de cinquenta metros de profundidade. Pereceram, pela hora de almoço, mais de meia centena de pessoas e a capital de S. Tomé ficou privada de água e de energia eléctrica, dado que o deslizamento arrastou consigo o canal adutor que servia a cidade. Como solução de recurso, foi construído um by pass à zona afectada, usando como elemento de interposição, um cone de um vulcão extinto. No inquérito, então em curso, procuravam-se culpados. Não sei o que ficou exarado nas conclusões do inquiridor. Mas sei que depus, ao tempo, que S. Tomé e Príncipe não tinha quadros com formação à altura de analisar um processo de ruptura progressiva de uma encosta constituída por solos residuais problemáticos, ricos em argila constituída por material amorfo (alofana e imogalite) à mistura com blocos de rocha decomposta e blocos de rocha alterada, nem tão pouco tinha quadros à altura de calcular o factor de estabilidade de um talude homogéneo e de pequenas dimensões. Por isso, a culpa parecia-me ser do Estado.
A tragédia da ilha da Madeira não se deveu a deslizamentos de massa, muito embora, pontualmente, possam ter existido pequenas derrocadas e cedências de socalcos. Para além do número de vidas, demasiado pesado para o evento em causa, ressalta sobretudo o forte efeito erosivo das águas bravas que arrastaram não só a argila, a areia e o cascalho dos solos, mas também calhaus, matacões e blocos de rocha de consideráveis dimensões e, obviamente, veículos, mobiliário e outros bens de equipamento. Estamos perante uma tragédia, que se deveu, fundamentalmente, a quatro tipos de deficiência:
a) Não existência de serviços meteorológicos equipados à altura de prever, com a devida antecipação, o nível das tempestades. A inexistência de radar é imperdoável.
b) Inadequada preparação da Defesa Civil e das populações, para enfrentar a ocorrência de eventos desta natureza.
c) Falta de infra-estruturas drenantes apropriadas a picos de grande pluviosidade e inadequada ocupação e uso do solo.
d) Deficiente ordenamento do território.
Todos sabemos que o peso da História de um povo também se faz pela acumulação de erros, que provêm de hábitos que se perpetuaram nos tempos, graças a benefícios ornados de risco que, mais tarde ou mais cedo, podem ser cobrados com custos avultados. Na Madeira, o ordenamento do território e a ocupação e uso do solo são maus, como são maus em muitas outras regiões de Portugal, incluindo o Continente. Ter pontes construídas a cotas inferiores à cota máxima de cheia das ribeiras e ter prédios posicionados em leitos de cheia é uma insensatez. Em termos de hidráulica, as barragens são calculadas do ponto de vista probabilístico para a cheia do milénio, os leitos de cheia para a cheia do século e os colectores citadinos estão a passar para duas décadas. Vivemos uma fase intranquila do nosso planeta, nomeadamente do ponto de vista climático. O regime torrencial, as tempestades tropicais, os ciclones e até tornados tendem a aparecer em regiões onde não são tidos como característicos. E é nesse sentido, que temos de planificar o futuro que vai ser árduo, longo e dispendioso.
Finalmente, sobrou o terramoto do Chile. Quase nove na escala de Richter, versus sete no terramoto do Haiti. O ímpeto da placa Nazca voltou a afrontar a capacidade dos povos da América Latina em especial ao correr dos Andes. E, desta vez, o Chile aguentou uma das maiores sacudidelas a que a crosta terrestre foi sujeita. Segundo um artigo da NASA, o sismo terá alterado o eixo de rotação da Terra e terá encurtado ligeiramente o dia. Obviamente, ainda com demasiadas mortes, mas também com muitas estruturas (edifícios, pontes e outras) a aguentarem as múltiplas solicitações a que foram sujeitas, facto que demonstrou, ao mundo, que a América Latina não é o Haiti e que muita gente desta América Latina passou por escolas onde aprenderam a projectar e a construir tendo em conta o risco sísmico, facto que me leva de volta à primeira parte desta crónica, designadamente às lições de sismologia no Imperial College (Londres) e aos estudos experimentais relativamente ao comportamento de estruturas sujeitas a solicitações sísmicas. Se estiverem vivos, aqueles que dimensionaram e construíram as estruturas que resistiram ao último grande sismo do Chile, o mundo deve retribuir-lhes, em vida, com uma profunda e prolongada manifestação de gratidão. É deste modo que se deve encarar o futuro.
A Natureza é, na verdade, para mim, um armazém de marcantes recordações e, revivê-las, um imperativo de sobrevivência, sob a plenitude da sanidade mental. Podem cantar aos quatro ventos que é uma loucura. Contudo, este sacrifício e outros afins não passam de formas de evitar que a consciência me acuse, quando chegar a hora do meu repouso eterno. Cada um tem a fé que tem e eu, em miúdo, embora adorasse minha mãe, nunca acreditei que o azul fosse a cor real do céu, que ela dizia ser a fronteira do reino de Deus. A ignorância, a insensatez e o vício são de tal modo humanos que as sociedades ficariam desumanizadas se este e outros defeitos cessassem. «Já viram o que era viver numa sociedade na qual ninguém reconhecesse a virtude, pelo facto de não existirem vícios e outros malefícios e a economia girasse à volta do vácuo da generosidade?(…) Os grandes profetas e místicos da História são excepções e a humanidade é tudo menos uma excepção; a humanidade é a regra, muito embora Frei Luís tivesse concluído, depois dos seus estudos sobre S. Tomás, S. Agostinho, S. Bernardo, S.ta Tereza e outros: «Quer se ensine ou se viva no claustro, se trate ou não de doentes, se seja ou não religioso, todos acabamos por ser chamados à vida interior (…) e obrigados a reflectir sobre os frutos da própria vivência.» Horta da Silva (2003)¹
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¹ Horta da Silva (2003) – Introspecção de Nuno Barros (narrador) no romance “O Ambientalista, A Esfinge Egípcia e A Face Oculta da Verdade”.