(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
agape.usuarios.rdc.puc-rio.br
Muitas vezes se anunciou a morte de Fidel Castro. Desta vez foi verdade. O ex-presidente de Cuba fechou definitivamente os olhos aos 90 anos de idade. E sua morte sacudiu o mundo.
Fidel Castro é, sem dúvida, uma lenda controvertida. Lembro-me quando desceu a Sierra Maestra, acompanhado de seu pequeno grupo de companheiros, e entrou triunfalmente em Havana. Eu era adolescente e vibrei com aquele homem alto, jovem, barbudo e vitorioso. O Brasil se rendia ao charme do Comandante.
Pouco depois, começaram as controvérsias. O Comandante se declarara marxista-leninista. E o presidente Jânio Quadros caiu em parte porque condecorou Ernesto Che Guevara – seu embaixador e ministro de Cuba – com a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul, nossa comenda maior. As notícias de que a revolução prendia e torturava dezenas de pessoas, fuzilando várias no chamado “paredón”, começaram a jogar outras tintas sobre a imagem idealizada de Fidel Castro.
Fidel depôs Fulgêncio Batista e transformou Cuba em um reduto de socialismo real, com vigoroso apoio da União Soviética. Permaneceu no poder por décadas, inicialmente como primeiro-ministro, de 1959 a 1976, e como presidente de 1976 a 2008. De liderança incontestável, o falecido Comandante esteve no epicentro de vários conflitos com outros países, sobretudo com os Estados Unidos, seu forte vizinho do Norte.
Após a queda do muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, em 1991, a ilha sofreu um rude golpe, e seus habitantes passaram a carecer de muitos recursos de que antes dispunham. Castro não se vergou diante das pressões e do embargo estadunidense e, com o apoio da Venezuela, levou adiante o regime que instaurara sem mudanças significativas a não ser maior austeridade. Permaneceu no poder até 2008, quando, doente, passou a presidência a seu irmão mais novo, Raúl Castro.
Tão singular figura deixa um legado controvertido. Por um lado, é difícil para a mentalidade democrática aceitar que desde a vitória da Revolução o povo cubano não tenha tido eleições. É incompreensível inclusive porque certamente Fidel sairia vencedor. O povo que o ouvia devotamente em seus longos discursos, sob sol ou chuva, não iria deixar de prestigiá-lo com votos. E o Comandante passou à história como ditador.
Da mesma forma, em seu governo a liberdade de Cuba foi bastante restrita. As comunicações são precárias e escassas, permanecendo acessíveis apenas aos turistas e aos hotéis existentes. Recentemente, começou uma abertura lenta e gradual, e os celulares e correios eletrônicos se fazem mais presentes, ainda que com muita parcimônia.
Paradoxalmente, porém, a Revolução cubana conseguiu atingir níveis de desenvolvimento humano que muitos de nossos países ainda estão longe de conseguir. O maciço investimento em educação e saúde erradicou a alta taxa de analfabetismo antes existente. O povo cubano é todo ele escolarizado, culto e letrado. A medicina é excelente, chegando mesmo a liderar o ranking em algumas especialidades, como dermatologia e oftalmologia.
Se austera e restrita é a vida do cubano, ali não se encontram famintos ou mendigos dormindo nas ruas. E um cartaz que se pode ver no caminho do aeroporto ao centro da capital diz: “Hoje 200 milhões de crianças dormirão na rua. Nenhuma é cubana.” A ilha, que em 1959 tinha como perspectivas amargar um quadro de miséria terrível ou tornar-se um balneário estadunidense, deu às novas gerações um nível de vida em que as necessidades básicas estão atendidas, ainda que sem excessos e com austeros limites.
O povo cubano é digno, apesar de todas as vicissitudes, e a tudo enfrenta com humor e criatividade. Muitos veneram o Comandante e choram sua morte, em desolada orfandade. Outros, que o apoiaram nos primeiros momentos, se decepcionaram e ali permanecem por patriotismo e idealismo. Inúmeros, incontáveis, deixaram Cuba e se foram para os Estados Unidos, ou para a Espanha ou algum outro destino.
Os cubanos que vivem em Miami permanecem unidos, alimentados pela nostalgia do que deixaram para trás. Festejaram a morte do líder que consideram responsável pelo sofrimento deles. Não é humano nem digno festejar a morte de um ser humano. Porém, as feridas que ficaram são profundas e provocam extrema dor ao serem tocadas e expostas. Esse sofrimento merece respeito.
Fidel foi educado pelos jesuítas e conheceu e praticou o cristianismo em sua infância e juventude. Posteriormente, afastou-se da fé e da prática religiosa. Fez de Cuba uma nação onde todos os credos devem ter espaço na proporção do número de fiéis em suas fileiras. O dominicano brasileiro Frei Betto, que o conheceu de perto e fez com ele uma longa entrevista, escreveu o livro “Fidel e a religião”. Ali fica patente no Comandante uma abertura ao Transcendente e uma simpatia pelo cristianismo e seus princípios de justiça e fraternidade.
Fidel não está mais entre nós. A história julgará seu legado um tanto paradoxal. Ainda jovem, ele mesmo disse, quando participou de um levante armado, que acabou por leva-lo à cadeia: “A história me absolverá”. Não são muitas vezes clementes os juízos da história e não sabemos ainda como se pronunciarão sobre este homem de inigualável carisma e controvertida liderança.
Uma coisa é certa: Deus já o absolveu. Se Fidel Castro cometeu erros, pecados ou crimes, a misericórdia divina e infinita não deixa ninguém sem perdão. E se os pobres foram beneficiados e o povo foi arrancado da miséria que parecia ser o seu destino, isso brilha e refulge, dando glória a Deus.
Descanse, Comandante. A luta por aqui continua. E que em sua ausência Cuba possa seguir altiva e digna, mas desfrutando de mais paz e liberdade.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: [email protected]