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(Sermão na Igreja Betesda – Caruaru, nos seus vinte anos de instalação, 06, Novembro, 2016)
Reverendo irmão e amigo Pastor Ozéias; queridas e queridos irmãs e irmãos,
INTRODUÇÃO:
Vocês estão a celebrar vinte anos de serviço ao Reino de Deus nesta cidade. Para mim é subida honra ter o privilégio de dirigir-lhes a palavra, logo na abertura deste mês festivo. Celebramos a caminhada fazendo parada a cada semana para meditar de novo a Palavra das Escrituras e a partir dela, da Palavra do Senhor, avaliar uma vez mais a caminhada feita. “Betesda”, Casa da Misericórdia, que a misericórdia do Senhor esteja viva nesta casa e irradie e transborde para todas as pessoas que dela se aproximarem!
Depois de vinte anos, deve ser claro para a Igreja que a conversão não foi apenas para pertencer a uma nova religião. Muito menos, para começar a pertencer a novo grupo de amigos e amigas que se reúnem, oram em conjunto, se consolam mutuamente nas dificuldades e, como fraternidade, se ajudam entre si e fazem alguma coisa para minorar sofrimentos de pessoas que necessitam de socorro.
Não, foi para algo muito mais profundo e muito maior, muito mais radical e exigente de todo o ser de vocês. Somos chamados, chamadas a refazer nossas vidas, a “nascer de novo”: refazer nossas pessoas e nossas relações com o mundo que nos cerca e do qual fazemos parte. Nossa vocação, excelsa e tremenda, é assumir a missão do próprio Deus, desde nosso interior até às dimensões do mundo. O chamado é para assumir e viver HOJE a missão de Jesus, como Ele mesmo o fez ao proclamar na sinagoga de Sua terra o texto do profeta Isaías e corajosamente anunciar: “Hoje se cumpre esta Escritura” (cf. Lc 4, 21). Na verdade, conversão é algo radical e exigente. E vocês o resumiram nas três palavras que nos dirigirão neste mês de aniversário: mês de festa, alegria e ações de graças, decerto, mas, ao mesmo tempo também, de avaliação e de “volta ao primeiro amor”. Palavras que são, plagiando o Apóstolo, como “espada de três gumes”, se a comparação tivesse lógica.
LIBERDADE, a palavra que designa a nova condição em Cristo. “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5,1). “Vós fostes chamados/as à liberdade, irmãos e irmãs. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pelo amor, ponde-vos a serviço umas pessoas das outras” (Ibidem,v.13).
Em Gl 4, 1-7 temos uma boa descrição de como se dá essa passagem da escravidão à liberdade. Éramos como crianças de menor, “em nada diferentes de escravos”. Estávamos debaixo do poder de tutores e curadores, “debaixo dos elementos do mundo”. Fomos resgatados e resgatadas da Lei, de um poder exterior a nós, e recebemos a adoção filial. Passamos a ser filhos e filhas, e por isso herdeiros e herdeiras da obra de Deus. Já não estamos em submissão nem à Lei, nem a “deuses que na realidade não o são”, nem “a fracos e miseráveis elementos”, sob o domínio de observâncias fixadas pelo regime deste mundo: “dias, meses, estações, anos”, proibições e permissões… Com isto, o Apóstolo nos quer dizer que nos sentíamos debaixo dos elementos, dos critérios, dos valores, dos poderes, das pressões e das instituições deste mundo. Em vez, agora “já não somos estrangeiros e adventícios, mas concidadãos de santos e santas e membros da família de Deus”, como se lê em Ef 2, 19.
O que é ser livre? Responde-nos a Carta aos Gálatas 5, 16-24, indicando-nos quais são os frutos da carne e qual é o fruto do Espírito. Chama a atenção a diferença: “frutos da carne” e “o fruto do Espírito”. A carne nos dispersa e desencaminha pelos muitos atalhos do desamor; o Espírito nos unifica no amor, pois nos identifica com quem amamos. E o que é a liberdade? Ser livre é ser em si, ter a posse de si. Ora, essa condição não se alcança quando alguém vive para si, sob a escravidão dos próprios caprichos e interesses, agarrado/a a si mesmo/a, pois ser livre não é “fazer o que eu quero”, como criança ensimesmada. Ser livre é possuir-se a ponto de poder entregar-se. Só se entrega quem se possui. Por isso, só se chega à liberdade mediante o amor, pois amor é capacidade de entregar-se, a saber, capacidade de projetar-se “para além de si”, fazer-se oferenda. Na área da Psicologia se diz que o que nos torna pessoas adultas é nossa capacidade oblativa, ou seja, não ter medo de compartilhar a vida e o mundo com as outras pessoas, tê-las, ao inverso, como aliadas. Já não precisar tanto de atenção, de chamar a atenção para si, como crianças inseguras, mas dedicar atenção a outrem. Vi o poeta Ferreira Gullar, que não se confessa crente, a expressar com profunda convicção aquilo que é justamente o centro do Evangelho: “É evidente que o sentido da vida são as outras pessoas”, isto é amor, o estar sem medo “para além de si”. Ora, o que está “para além”, senão Deus? Mesmo que a pessoa ainda nem saiba Seu Nome. É que ninguém pode exigir de outrem que se dedique, se entregue ou até se esvazie, pois temos todos e todas o mesmo valor. Só Deus é absoluto e tudo pode exigir, até o dom da própria vida, justamente o que nos ensina a Primeira Carta de São João: “Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus; quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4, 7-8) e “quem pratica a justiça nasceu d’Ele” (1Jo 2, 29). Em outras palavras, se Deus é amor, o Amor é Deus. Deus não é crença, pois crença não equivale a fé, Deus não designa pertença religiosa, antes, Deus é experiência de amor. Na verdade, Liberdade, Amor e Serviço são três modos de dizer a mesma experiência: Somos livres quando amamos porque superamos o narcisismo, e o amor se manifesta e se concretiza no serviço. Ser o primeiro é ser servo/a de todos/as, como diz Jesus (cf. Mc 10, 41-45). Só nos tornamos pessoas adultas pela força do amor, o mesmo que dizer que só Deus nos torna realmente pessoas, mediante o Amor, que é Sua própria identidade. Santo Agostinho expressou isto de forma lapidar: “Deus é mais alto que tudo o que há de alto em mim, e mais íntimo que meu próprio íntimo” (“Superior supremo meo, interior intimo meo”). Deus nos salva por dentro, manifestando-Se como transcendência dentro em nós, ao fazer-nos ser em nós enquanto somos para além de nós. É assim, no evento transcendente de nossa liberdade, que Deus Se revela como horizonte de nossa humanização. Em outras palavras, quando nos ultrapassamos mediante o amor, é que estamos realmente em Deus e nos tornamos realmente pessoas. É o mistério de nossa “divinização”, que só se alcança por experiência.
FÉ. Em hebraico, a língua da Bíblia, se diz “emunah”, da mesma raiz de “amén”). Equivale a firmeza, confiança e fidelidade: FIDEM (fé) é sentir-se firme, com os pés em firme alicerce. Quando Jesus diz: “Crede na Boa Nova”, não se trata de aderir a novas crenças. Antes, trata-se de mudar de direção radicalmente e apoiar-se no Evangelho como o firme alicerce do novo caminho (cf. Mc 1, 14-15:); FIDUCIAM (con-fiduciam) quer dizer confiança; FIDELITATEM (fidelidade) indica manter-se fiel. Todos os três são vocábulos da mesma família.
Diz-nos o Apóstolo que o passo para a liberdade é um trauma semelhante a morrer, na verdade, o trauma para tornar-se pessoa adulta e madura. Vemos isto em Rm 6, 5-14, quando se fala da fé e do batismo. Compreende-o bem quem já passou por perigos extremos, como um grave acidente ou grave enfermidade: “Puxa, nasci de novo!”. Só uma experiência de morte nos faz sentir profundamente o valor da vida e o que significa a passagem do desamor ao amor. Para dar semelhante passo, por decisão própria, porém, é preciso sentir firmeza, confiar plenamente e empenhar-se em ser fiel e prosseguir, pois é tomar novo caminho, viver para além de nós e para além do sistema do mundo, como se nos ensina em Rm 12, 1-2: “Ofereçam o corpo (a vida quotidiana, “material”) de vocês em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, é este o culto como deve ser. E não se deixem moldar pelas estruturas do sistema deste mundo, mas transformem-se radicalmente, desde o profundo de sentimentos e pensamentos, para que possam distinguir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito”. Inclusive porque não basta tentar esconder-se do mundo, fugir, iludir-se, pois para onde formos o mundo irá conosco, pois está dentro de nós. A fuga não deve ser para outro “espaço”. Só nos é permitido fugir para adiante, caminhar a frente, como o povo no deserto em busca de Deus e de Suas promessas, assim nos convocam insistentemente os profetas. Isto significa que só é possível fugir para adiante, profetizar e lutar para que o mundo seja transformado, tenha mais ambiente de Reino de Deus para nós e para todas as pessoas: nos valores que orientam nossa vida pessoal, nossas relações interpessoais, nossas relações sociais, nossas relações e estruturas de povo e de humanidade, incluindo nossas relações com a Natureza. A proposta do Evangelho para cada pessoa é de conversão radical aos valores de Cristo e de transformação radical da realidade do mundo, desde a relação com as coisas (Economia e Ecologia) até nossas relações interpessoais e sociais e políticas, chegando finalmente a transformar os valores que dirigem nossa vida, é a cultura, ou seja, o que se cultiva no coração e na mentalidade. Na verdade, nossa vida de Igreja vai muito além do espaço da Igreja, nos faz “novas criaturas” como primícias de uma nova criação (cf. Rm 8). É esta a mensagem do Novo Testamento. É como morrer para a vida que fomos e renascer – ressuscitar – para uma nova vida (cf. 2Cor 5, 16-21) , é o que lemos em todas as epístolas. O grande trauma, a passagem radical não é nossa morte física; para quem crê, a grande e decisiva passagem é “passar da morte para a vida quando nos amamos como irmãos e irmãs; quem não ama permanece na morte”, assim aprendemos em 1Jo 3, 14. Isto é Fé.
CORAGEM. Por isso não é nada fácil, trata-se de uma aposta e é preciso coragem de arriscar-se nessa “grande confiança”. Segundo Efésios 6, 10-17, temos de ser novas pessoas, fortes e decididas para romper e combater contra a mentalidade e os poderes que dominam este mundo. Se nascemos de novo em Cristo, é que fomos batizados/as em Sua indomável coragem para ser comunidade intrépida e presente em meio aos problemas da cidade, do país e do mundo. Assim, nossa dignidade de filhos e filhas de Deus se faz solidariedade com quem necessita, para que seja restaurada a dignidade das outras pessoas; mas ainda não basta, é preciso ir às causas das necessidades e dos sofrimentos humanos, por isso se faz necessário lutar contra estruturas e culturas de injustiça e opressão; finalmente, o mundo, obra de Deus, nossa “casa comum” exige cuidado para zelar pela criação, preservar e renovar os recursos da terra em benefício de toda a humanidade. Para que assim se estabeleça o XALÔM, a felicidade que é o ideal bíblico de vida: desde a felicidade pessoal e a harmonia entre os seres, até a paz universal, como se anuncia na Carta aos Efésios, cap. 2º.
Para trilhar esse arriscado caminho é preciso fortalecer-se com a oração, o aprofundamento da Palavra de Deus e a convivência comunitária na qual bebemos do Espírito Santo. Entregamo-nos a Deus e Ele, em Sua generosa liberdade, nos devolve a nós e aos demais, como instrumentos de transformação das pessoas e do mundo.
Na força do Espírito, vai ser possível, então, planejar lucidamente nossa ação, em aliança com todas as forças que desejam e lutam pela transformação das pessoas e da sociedade, percorrendo a estrada do que hoje se chama de “ecologia integral”. O chamado de Deus é que sejamos as primícias de um novo mundo, uma “nova criação” (cf. Rm 8). O que se nos pede não é pouco, é assumir corajosamente a própria missão de Deus, de recriar este mundo, como fez Jesus, ao ler na sinagoga de Sua terra o trecho do profeta Isaías e dizer com plena e corajosa convicção: “Hoje se cumpre esta Escritura”. Hoje, aqui, nesta noite, neste recinto. Do contrário, ainda não somos livres, ainda não temos fé, ainda não somos pessoas com a coragem de Deus. Que Ele, com Seu poder de salvação, nos livre desta acusação e nos torne pessoas sempre mais fiéis! Sempre mais íntimas d’Ele, para sermos cada vez mais “sacrifício vivo”, libação que se derrame por sobre o sacrifício de nossas vidas entregues pela vida do mundo (cf. Fl 2, 1718), na semelhança de Jesus, cujas marcas sejam trazidas em nossos corpos (cf. Gl 6, 17)!
(cf. Gl 6, 17)!
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
Imagens enviadas pelo autor.