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Preconceitos e acusações descabidas são uma prática mais antiga que a Sé de Braga. Meleto, no século IV a.C., acusou Sócrates de “descrer dos deuses em que crê a cidade e propor novas divindades. Também é acusado de corromper os jovens. A pena proposta é a morte.”

Era o ano 399 a.C., quando Sócrates tinha 70 anos. Integravam o júri 501 cidadãos com mais de 30 anos. Não havia promotores, advogados, juiz ou força policial. Quem se considerasse vítima de um crime, que se queixasse ao oficial encarregado do tribunal de Atenas.

Meleto se apoiou em duas testemunhas, Ânito e Lícon. Em seguida, Sócrates se defendeu. E desafiou Meleto a apresentar os jovens que teriam sido desviados da fé citadina.

Ouvidos acusação e defesa, os jurados depositaram seus vereditos na urna. Culpado, 281; inocente, 220. Restava decidir a pena. Meleto propôs a morte. Sócrates, penas menos cruéis. Na nova votação, a maioria preferiu a pena capital: 361 a 140. Um mês depois, Sócrates pôs fim à vida ao beber cicuta.

Quem estava com a razão: o filósofo ou a maioria que votou contra ele? A inteligência ou o júri popular impelido pelas acusações a Sócrates?

O que sabemos de Sócrates é por via de Platão que, em sua Apologia (que, em grego, significa “defesa”), reproduz o que Sócrates teria dito aos jurados. Sócrates nada escreveu e todo o processo foi oral. É possível que Platão tenha colocado a sua versão dos fatos na boca de seu mestre. Existem mais duas versões do julgamento, ambas assinadas por Xenofonte, mas contraditórias entre si.

Todo fato exige ser analisado dentro de seu contexto político. Sócrates foi julgado cinco anos após o fim da Guerra do Peloponeso, que opôs Atenas e Esparta. Iniciada em 431 a.C., terminou em 404, com Atenas derrotada. E, com ela, a sua democracia.

Atenas passou a ser controlada pelo exército espartano e governada por uma junta ditatorial conhecida como os Trinta Tiranos. Derrubada a junta em 403, restabeleceu-se a democracia coroada por uma anistia geral.

Na verdade, o impeachment da junta deu lugar a uma democracia seletiva. Todos são livres, desde que não manifestem ideias contrárias a quem governa. E o poder e quem o apoia reagem com ódio quando alguém ousa criticá-los.

Ora, como considerar democrático um governo que não suporta a liberdade de opinião de facto? A saída foi acusar Sócrates de herege. Logo ele que, segundo Platão, era homem piedoso e cumpridor de seus deveres religiosos.

E por que acusá-lo de “introduzir novas divindades” se a democracia ateniense se estendia às esferas celestiais? Asclépio, deus da cura, acabava de ser introduzido ali, ao lado de divindades estrangeiras, como Cibele e Bendis.

É verdade que Sócrates admitia possuir um daemon interior, um deus em seu íntimo, que o inspirava buscar princípios éticos, não no Olimpo, mas na razão. Mas certos poderes não suportam o pensamento crítico.

E que jovens ele teria corrompido? Mileto, precursor da Escola Sem Partido, alegou que muitos deixaram de seguir a autoridade dos pais para abraçar a dos mestres, como Sócrates. Este retrucou afirmando que educação deve ser confiada a professores, e não a parentes, pois quem necessita de médico deve procurar o especialista, e não os pais.

Até o século V a educação formal não existia na Grécia, exceto para música e exercícios físicos. As crianças aprendiam a ler e a escrever com escravos letrados. Os jovens se instruíam no contato com os mais velhos, no teatro, na ágora, nos rituais religiosos.

Porém, em meados do século V apareceram os sofistas, professores de retórica, filosofia e política. Aplicavam a crítica à moral e à religião. Os líderes obscurantistas reagiram, pois não queriam um povo pensante. Em Mênon, Platão transcreve a reação de Ânito, um dos acusadores de Sócrates: “Mais loucos que os sofistas são os jovens que gastam seu dinheiro com eles; e piores, os seus responsáveis, por deixá-los cair nas mãos dos sofistas. E piores ainda as cidades que os admitem e não os expulsam.”

Como o senso comum se deixava influenciar pelo principal meio de comunicação de massa da época, o teatro, 24 anos antes do julgamento Aristófanes retratou, em As nuvens, Anaxágoras, Protágoras e Sócrates como corruptores da juventude.

Por isso, Platão se decepcionou com a democracia. Defendia que o governo deveria ser entregue aos mais preparados, os filósofos. E confirmou que o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Platão e Xenofonte passaram a idealizar Esparta. Esqueceram apenas de um detalhe: lá Sócrates sequer teria a liberdade de pensar, quanto mais ensinar.

Obs: Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.

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