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Causou espanto em todo o país a proposta de reforma do ensino médio anunciada no dia 22 de setembro, através de Medida Provisória, a MP 746, pelo governo golpista de Michel Temer. No ato de apresentação da iniciativa disse o Ministro da Educação, Mendonça Filho: “As crianças e os jovens do Brasil têm pressa. A educação precisa avançar”. Pressa? Que absurdo! Segundo as informações publicadas a MP foi gerada em função dos recentes números do IDEB no ensino médio no país, considerados baixos, tanto na rede pública quanto nas escolas privadas. Ora, culpar o atual modelo de currículo do ensino médio por esses números é uma distorção grave, miopia profunda, álibi para reformas que visam outros interesses, que vamos aqui expor. A MP amplia de 800 horas para 1400 horas anuais a carga horária dessa etapa, sugere educação integral, reformula a oferta de disciplinas reordenando-as por áreas e estabelece uma etapa de formação comum e outra profissionalizante. O vai e vem em torno da manutenção da obrigatoriedade (inicialmente negada) de filosofia e sociologia, bem como de artes e educação física no currículo do ensino médio, porém com escolha flexível pelos alunos, tornou a aludida reforma mais combatida ainda. Será que o país precisa disso? Estamos na estaca zero? Há urgência e relevância para que a proposta fosse enviada através de medida provisória?
Vamos aos fatos. O ensino médio é a última etapa da educação básica, antecedido pela educação fundamental e pela educação infantil, cujas matrículas devem se iniciar nas creches. Há dez anos o país aprovou a Emenda Constitucional 53, criando um fundo para a educação básica e a valorização dos profissionais da educação, o FUNDEB. Através desse mecanismo a União complementa com, no mínimo, 10% o que estados e municípios destinam ao fundo (20% de um conjunto de suas receitas). Ao mesmo tempo, quando os entes da federação não suportam as despesas com salários, carreira dos profissionais da educação, manutenção e desenvolvimento do ensino de suas redes com aqueles 20%, recebem a complementação federal de acordo com suas respectivas matrículas de crianças e adolescentes, nas diversas modalidades e etapas de ensino de sua competência. Para 2016 estima-se a receita total do fundo via estados e municípios em R$ 125,63 bilhões. A União deverá entrar com, no mínimo, R$ 11,30 bilhões, além disso. A fonte é http://www.fnde.gov.br/financiamento/fundeb/fundeb-dados-estatisticos, acesso em 24 de setembro.
Isso comprova que os números do ensino médio, quando deficientes, não nascem nem se encerram nessa própria fase, mas derivam principalmente do acúmulo de deficiências das etapas anteriores, como apontado no capítulo da educação, na edição do último trimestre de 2015, do Boletim de Políticas Sociais do IPEA, acessível na página daquele instituto da administração federal. Além disso, o ensino médio, como etapa da educação básica, já foi objeto de reforma quando das discussões, entre 2010 e 2014, do Plano Nacional de Educação, o PNE, sancionado através da Lei 13.005/2014. Foram ouvidos Secretários Estaduais e Municipais de Educação, gestores das redes pública e privada, especialistas em educação da graduação e pós-graduação na área, membros do Conselho Nacional de Educação, entidades estudantis e de profissionais da educação. Desse longo, profundo e objetivo trabalho foram aprovadas metas e estratégias, inclusive no tocante à ampliação da jornada para educação integral nas diversas etapas da educação básica. Dessa importante construção para o país, durante quatro anos, o atual Ministro da Educação, embora fosse deputado federal, não participou de absolutamente nada.
Por isso, a reforma do ensino médio, e de toda a educação básica em especial, já foi feita, de forma democrática, plural, calculada, estimada em termos de custo e financiamento, e as mudanças estão em curso, sendo uma irresponsabilidade, pouco mais de dois anos depois dessa ampla reforma, com planos estaduais e municipais de educação em andamento, jogar fora todo esse trabalho e, através de uma medida provisória, propor ao país um arremedo de reforma para o ensino médio. Por que?
Em primeiro lugar, como já vimos, sob a ótica da melhoria do fluxo escolar, o ensino médio não reproduz hoje a maioria das matrículas que se originaram na educação infantil e no ensino fundamental, fruto da evasão e da repetência. Isso não é causado por um currículo duro ou flexível, como agora se sugere, mas por causas anteriores internas e externas à escolaridade dos educandos. Em segundo lugar, como amplamente analisado há anos, os jovens mais pobres abandonam a escola mais cedo, quando escapam dos assassinatos, sobretudo os negros e pardos, em busca do mercado de trabalho e do complemento para a renda familiar também precária. Quanto a isso, não será uma troca, subtração ou fusão de disciplinas em linguagens que trará soluções para a permanência desses jovens nessa etapa. A tal flexibilização defendida pela MP vai privá-los e afastá-los mais cedo, também, da formação integral, que ficará apenas para os que almejam chegar à Universidade, sustentados pelas famílias de maior renda durante o ensino superior. Como se vê, uma reforma para reforçar a desigualdade e a estratificação.
Os jovens pobres, pressionados pela disputa da renda, abandonados à inércia da desigualdade, terão pouco interesse, em sua maioria, em estudar filosofia e sociologia. A opção de deixá-los montar seu próprio currículo expõe a omissão do estado em reconhecer “ as múltiplas juventudes que estão na escola, sua diversidade, necessidades e direitos” (manifesto do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio) e também o abandono de seu papel como promotor de políticas de igualdade e de acesso dessa juventude pobre, negra, das periferias, às universidades, o que tem incomodado parte da elite brasileira nos últimos dez anos.
Por fim, boa parte dos indicadores precários do ensino médio deve-se à disparidade da existência de insumos educativos entre as escolas das diversas regiões do país, com as maiores defasagens existentes ocorrendo nas escolas da região nordeste, nas periferias urbanas e rurais, ainda que com o complemento de verbas federais aos estados, o que não será resolvido com aumento de carga horária pura e simplesmente, fusão ou extinção de disciplinas. Óbvio. Além disso, o MEC anuncia R$1,5 bilhão em dois anos para a expansão da educação integral. Para 27 estados e o Distrito Federal, significam R$ 26,7 milhões/ano. Isso não é nada. Basta compararmos. Pelo FUNDEB, em 2016, só o estado de Alagoas, que receberá a menor transferência da União, terá R$ 378,04 milhões.
O cinismo é tamanho que o governo que sugere a reforma é o mesmo que quer reduzir os gastos públicos por vinte anos, vinculando sua expansão à inflação do ano anterior, através da PEC 241. O PMDB, o partido de Temer, é o mesmo que propôs em outubro de 2015, no documento “Uma ponte para o futuro”, a desvinculação das receitas orçamentárias para a educação e saúde. Ora, como acreditar nessa “reforma” agora anunciada, com ampliação de carga horária e jornada, que implicarão em elevação de custos, com esses antecedentes?
A proposição, portanto, tem vários equívocos, que se assemelham aos que estão delineados no projeto de lei 6840/2013, oriundo da Comissão Especial para a reforma do ensino médio. Primeiro, é sugerida por medida provisória. Segundo, dá as costas para os problemas oriundos das etapas antecedentes ao ensino médio e que em muito influenciam seu desempenho em todos os aspectos, sobretudo na taxa de matrícula líquida (idade certa na série certa), além de passar em branco em relação às causas extraescolares da evasão de jovens, sobretudo os mais pobres, nessa etapa da educação básica. Em terceiro lugar nada oferece, como diagnóstico ou proposta, para as defasagens nas condições de ensino e equipamentos, hoje verificadas entre as escolas da região nordeste e das demais regiões do país, mais agravadas no ensino médio, além do deficitário provimento de docentes devidamente licenciados, um problema em todos os estados. Em quarto lugar alardeia um aumento de carga horária e de jornada num país que ainda se nega, por governadores e prefeitos, a pagar integralmente o piso salarial e suas correções anuais para as 40 horas semanais dos profissionais da educação. A MP não toca na valorização dos profissionais da educação. O pior aspecto, porém, é que, via medida provisória, se joga no lixo o trabalho de uma construção séria, sólida e coletiva, profundamente democrática, que foi a aprovação do Plano Nacional de Educação em 2014, um plano decenal, após quatro anos de trabalho no Congresso Nacional, gesto que só se explica tendo como origem um governo golpista, sem voto e que, dessa forma, tenta impor uma reforma dessa natureza. Inaceitável.
O IDEB é parte, não é o todo da educação básica no país, e seria até insuficiente para servir como balizador para essa reforma ora anunciada. Os parlamentares que viveram o debate e a construção do Plano Nacional de Educação até 2014, e que ainda estão no Congresso Nacional, devem convencer seus pares a obstruir ao máximo a discussão dessa irresponsável medida provisória, para que a mesma caduque nos prazos constitucionais. As escolas de ensino médio vão melhorar seu desempenho interno e quanto à universalização do acesso a essa etapa quando o governo federal e os estados, ao lado dos municípios, avançarem a partir do PNE de 2014, com o sistema nacional de educação, com a evolução do financiamento segundo as metas do PNE e fontes suplementares, oriundas do fundo dos royalties do pré-sal.
Por fim, a flexibilização da oferta de disciplinas como filosofia, artes, sociologia e educação física reflete o descaso com a formação integral dos educandos, direito de todos, princípio constitucional assegurado na carta maior do país desde 1988. Não é por acaso que, entre todos os que foram ouvidos, apenas duas opiniões se mostraram favoráveis à MP, segundo matéria de uma grande rede de TV na sexta-feira, dia 23 de setembro, no período da noite: A fala da atual Secretária Executiva do MEC e a do porta-voz de uma instituição vinculada a uma empresa do sistema financeiro do país. A própria alegação oficial de que as mudanças serão implementadas gradualmente só reforça nossa convicção que o caminho para o ensino médio e a educação básica no país não está na aprovação dessa reforma autoritária, míope, segregatória, mas, sim, na concretização ora em curso das metas e proposições do Plano Nacional Decenal de Educação, aprovado em 2014, democraticamente construído pela sociedade brasileira.
Obs: O autor é professor da UFPE e integra o Projeto Raiz Cidadanista.
Foi Deputado Federal Titular das Comissões Especiais que trataram da aprovação do Fundeb, em 2006, das Leis do Piso Salarial dos Profissionais da Educação (2008), do Plano Nacional de Educação (2014) e dos Royalties do pré-sal para a educação e saúde.