Depois de um trabalho de parto demorado e difícil, nasci, ao despertar o sol, no dia 04 de setembro de 1949. Com mais uma de suas tarefas concluída, Cecília parteira, extremamente zelosa, foi assistir a mais duas parturientes na mesma rua.

Na infância sempre vivi de forma intensa, com energia física e psíquica transbordando, sempre mais que suficiente para executar com agilidade um repertório amplo de atividades. Era considerado de comportamento indomável, impulsivo, imprevisível, rebelde, buliçoso e desinibido. Dormir por algumas horas era o suficiente para restabelecer minha disposição. Com sono curto, saía manhosamente de casa durante a madrugada enquanto todos dormiam. Vagueava sem rumo pelas ruas desertas, batia nas portas fechadas e tocava a campainha do hotel comercial fugindo na carreira para não ser notado. Voltava para casa, sem ser pressentido, antes do amanhecer do dia.

Nada me assustava. Almas de outro mundo, fantasmas, lobisomens, saci-pererê e bruxaria nunca me perturbaram. Cachorros, cobras, sapos e ratos jamais me causaram medo. Aliás, não demostrava nenhum carinho por eles. Com baladeira em mãos, caçava todos os pássaros, exterminava lagartixas e pombos. Era raro errar o alvo. Sem temer riscos, morcegava os ônibus que entravam na cidade. Sentia emoções agradáveis ao secar os pneus das bicicletas e quando eu badalava, fora de hora, o sino da igreja. Quando as nuvens tomavam a cor grafite, os relâmpagos cruzavam os céus e os estrondos dos trovões faziam tremer as vidraças, ficava na expectativa de que caíssem as primeiras gotas de água para festejar, sozinho ou com outros meninos, a chegada da chuva. Quanto maior o volume de água correndo pelas ruas, maior era a alegria dentro de cada um de nós. Satisfação manifestada por saltos, giros, gritos e danças no meio da chuva.

Em matéria de briga, era pau para toda obra e metia-me em qualquer discussão que envolvesse um amigo. Pequenas divergências não eram toleradas e deviam ser resolvidas. Aceitava ir aos murros com qualquer um do meu tope. Os resultados nem sempre eram os desejados e voltava para casa várias vezes com cortes na cabeça e nos lábios. Contudo, sempre machucava os desafetos com os punhos deixando-lhes os olhos inchados de cor roxa, quase preta.

No verão o calor do sol fazia arder toda a pele. Para esfriar o corpo, os domingos e feriados eram convertidos em passeios. E se um dia alguém sonhou com um lugar bonito e tranquilo, a ribeira fazia parte do seu sonho. Um paraíso terrestre. A estrada cheia de buracos e pedras. Um caminhão nos levava até o povoado e depois era preciso fazer uma trilha tortuosa e cansativa de uns 30 minutos, para chegar ao local do banho. O riacho da ribeira tinha uma de suas margens formada por rochas da serra, e a outra por areia branca e fofa, pedras miúdas, touceiras de capins e ervas daninhas. A água cristalina permitia ver o fundo do rio em quase toda sua extensão. A beleza do lugar, sem telefone, sem energia elétrica, sem carros a buzinar e o contato com plantas nativas nos transmitia a sensação de liberdade total. Parecia que estávamos desembarcando em outra era. No final da tarde o sol costumava esconder-se atrás da Serra da Ribeira. Era o momento de encerrar o banho doce. Retornávamos a Itabaiana com a mente alegre, satisfeita e feliz. O corpo cansado e a pele ardente e avermelhada pela ação do sol.

Outra tradição dos bons tempos, entre os meninos maiores e os adolescentes, era acampar na serra de Itabaiana e tomar banho no Poço das Moças. Até o sopé da serra, o deslocamento era feito de carona em caminhão. Depois da estrada principal, percorríamos um caminho longo, estreito e extremamente irregular dentro da mata atlântica. As árvores eram muito próximas umas das outras com suas copas entrelaçadas e quando o nevoeiro era denso havia perda de visibilidade dificultando o deslocamento e o rumo. Uma lâmina de água, com um a dois metros de largura e dez centímetros de espessura, descia pela serra acompanhando as ondulações das pedras. Formava um escorregador perfeito interrompido por uma piscina natural ovalada, de pouca profundidade, escavada nas rochas e batizada com o nome de ‘Poço das Moças’. Uma das maravilhas da natureza.

Inocente, acreditava que para ser feliz, era indispensável brincar nos parques internacionais. Aceitava como inquestionável que todo homem bem-sucedido era obrigado a conhecer Paris e Roma. Quando fazia vir à memória as lições do catecismo dominical, tinha como verdade que harmonia perfeita, tudo belo e paz duradoura, somente encontraríamos no céu. Todas essas ilusões teriam sobrevivido pouco tempo, se mais cedo eu tivesse conhecido o Riacho da Ribeira e o Poço das Moças.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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