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Enquanto era a noite preludiada pelo tempo, um inseto crepuscular qualquer sempre testemunha, de modo pouco interessado, a lúgubre reunião de todos os olores do cais da Ribeira. Entre outros perfumes, há o cheiro recente da noite, a fragrância proveniente do rio e da maresia, o fedor das vísceras e entranhas de peixes, o fartum dos excrementos de inúmeros gatos e o anélito do lixo que se putrefazia. Encontra-se, enfim, nesse lugar, a amálgama de aflatos e hálitos mais estranha e nefasta, que, manifestando-se em espetáculo promíscuo, motiva a inconfundível fetidez da imundícia portuária.

Apesar da desgraçaria que insiste em aparecer, vê-se também o belo ruivor do Porto. Graças a ele, à medida que o sol, que evidenciara o mormaço de mais uma tarde, tentava seduzir a noite como se seduz uma musa, mas, ao passar do tempo, morria no ocaso, como morreu o rei Pireneu, o tamarindeiro da frente de um mercadinho, em intrépida concórdia, mortificava a sua sombra. A sombra que escasseava, vale dizer, servia para dar contextura ao desembarcadouro dos passageiros do pequeno e bordejante barco — em cujo casco se via “Priscila meu amor” — e de lugar de descanso para algumas cortesãs experientes, que durante a sobretarde, no refazimento das energias que a modorra da manhã não reparara, esperavam, com um misto de pasmaceira e camuflada ansiedade, o trabalho da noite.

O aparecimento de jovens rudes e velhos carentes não é de todo incomum nas rodas de especulações diurnas promovidas pelas moças-dama. Estes e aqueles as tratam com curiosidade e oblíquo respeito, os quais são em graus diferentes dispensados nas conversas da noite. Quanto ao conteúdo dos colóquios diurnos, afirmo-te que são amenos, ingênuos, corriqueiros e, confrontados com o que se vê nas telenovelas de hoje, são mesmo infantis. Em relação ao barco “Priscila meu amor”, vale dizer que, além muita ferrugem, pouca esperança e alguns passageiros com seus problemas e atribulações, ele sempre traz consigo a acusação da lazeira da humanidade. O referido barco se ocupa do transporte de autóctones que, em grande parte, vêm ao centro da capital para a atividade do dia. Vale salientar que além de certa vacuidade entre o esôfago e o duodeno, estas famélicas criaturas também trazem nas entranhas a necessidade de alguns de esquecer o passado e a de outros, de sempre lembrá-lo, pois já estes têm por intento a empresa de fazer-se perder da própria lembrança o tempo presente. A humanidade se divide nestes dois grupos: os que afirmam a vida, o presente, com suas pulsações eufóricas de dor e os que negam-na, preferindo a mortificação em pleno fôlego. Ambas as opções, contudo, são miseráveis e há quem assevere que desta casta de miséria alimentara-se Mefistófeles, que se transfigurando em íncubo, copulou com todas as mulheres-de-amor do tamarindeiro e, dos pesadelos destas, gerou-se como filha única de vários ventres, a decadência portuária.

Ei-lo, assim, o velho cais acostável, cuja parede peleja contra a força que infunde o terrapleno. Perto da muralha que arrima o aterrado de um lado e prelia contra a água do rio Potengi do outro, mantêm-se árvores velhas e companhias tais como as dos pequenos roedores. Vêem-se também alguns prédios envelhecidos e malcuidados. Entre estes, para que nós nos familiarizemos com os possíveis proscênios de todas as tramas, vale registrar um conjunto de antigos casebres e, mais à direita, um outro mercadinho, que divide uma parede com uma casa de pescador e a outra com um pequeno sobrado. Encontram-se também uma pensão, vários bares — muitos dos quais mais prostíbulos que tabernas —, algumas ruínas habitadas, uma pequena praça — em cujo chão se vê pichada a figura de um homem que reúne algumas qualidades de herói-pescador —, além de outros lugares que a linguagem não conceitua.

Em que pese a necessidade de se falar sobre a ausência de políticas públicas de melhoramento efetivo das condições de vida do local, pode-se sob outro prisma dizer que o cais da Ribeira é, em si, a manifestação real do trágico e, sendo isso, também o é da própria arte. Existe uma idéia — defendida, entre outros, por Walter Benjamin — segundo a qual uma obra de arte, reproduzida em grande escala, perde o seu caráter artístico. Tal obra deixaria de ser arte e passaria a ser uma espécie de ícone. Certa vez, pensei nisso no sentido inverso. Assim, poderíamos imaginar se as cenas trágicas, cotidianas e repetitivas não poderiam se tornar  esteticamente mais apreciáveis do que qualquer obra de arte, pois elas são o objeto e a sua interpretação juntos em um só elemento e dispostos ao mesmo tempo, tudo gritando em voz alta para ouvidos surdos que há seres humanos vivendo em condições subumanas, há homens e mulheres que têm na vida um único intuito, o de fazer com que o tempo passe logo e a história não os note. Estes homens sacrificam-se para a arte e a arte, simplesmente, usa-os para alimentar-se de seu prato preferido: a tragédia, a qual sempre vêm às conversas de artistas e intelectuais, mas nunca antes do chá das cinco (eles preferem o Blue Moon Tea) acompanhado, quando possível, daqueles biscoitinhos com sabor de menta ou de chocolate (os artistas escolhem os Jacobs, os intelectuais, os McVities).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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