Ano Sabático em Negras – Pe – 1983
“Toda criação geme e sofre como que em dores de parto até o presente dia”. Quem grita a dor da criação é o carro de boi que puxa água no sertão de Negras. A vida é tão dura como estes carros que não conhecem mola, nem rolamento, nem graxa. O eixo que se machuca em cada rodada revolta-se com o atrito e canta sua dor numa nota só:
Viii – da di – fiii – cil! Viii – da di – fiii – cil! Viii – da di – fiii – cil!
Quem “puxa” este canto é a junta de boi que, submissa, carrega a carga, sempre na esperança de enfim ser libertada do cativeiro. Quem aguenta isto: Carregar quatro tambores cheios de água, quando não tem mais capim para encher a barriga? O gemido dos carros às vezes evolui para duas vozes, em intervalos de uma quinta:
Viii – da Viii – da Viii – da
duuu – ra duuu – ra duuu – ra
Sim, a vida é dura, e o Sr. Manoel já falou: “Até agora, a canga era de Imburana, mas daqui em diante vai ser de baraúna”. O lamento da criação, só Deus entende direito, este canto que não tem letra. Por isso, “as criaturas esperam ansiosamente que apareçam os filhos de Deus” para inventar o texto da triste toada. O canto é um só: dos carros que se arrastam na grande ladeira do povoado, e do povo que suplica na igreja: “SENHOR, ABRE OS CÉUS”.
A junta do Sr. Abraão passa na porta da igreja, quando o padre está no ofertório: “…pelo mistério desta água e deste vinho possamos participar da Divindade do vosso Filho…” Os bois participam, sem saber, da Divindade de Cristo, que carregou um peso tão grande em favor dos homens. O eixo do carro que tomou um fôlego depois de vencer a ladeira, fica animado e canta uma música diferente como se quisesse acompanhar o canto do povo: “QUE AS NUVENS CHOVAM O SALVADOR”. Mas o carro segue no seu ministério da água, enchendo latas e potes. Com pouco tempo esquece as palavras e cai na velha toada:
Viii – da Viii – da Viii – da
duuu – ra duuu – ra duuu – ra
Obs: O autor é Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrólis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.
Foto enviada pelo autor.