Patricia Tenório 1 de outubro de 2016

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Era uma antiga pedreira o lugar onde Maria resolveu levar Joana para fazer uma trilha. O voo dos passarinhos não se ouvia lá, porque as folhas secas das árvores se quebravam, se partiam, os ouvidos atentos às folhas, atentos ao próprio coração.

Maria começou a namorar Joana fazia pouco tempo. E fazia pouco tempo o bombeiro ensinou os primeiros socorros para as duas e aos três rapazes tão parecidos entre si que seriam trigêmeos não fossem de cores diferentes. E a um casal recém-casado, recém-constituído-um-lar, que não parava de trocar beijos e abraços, o que chamou a atenção de Joana.

– Eles não têm muito tempo.

Elas não tinham muito tempo. Mas pareciam séculos. E todos os dias Joana ligava quando saía da aula para marcar com Maria na lanchonete da escola. Não podiam se beijar, se abraçar, trocar carícias. Mas olhavam uma para outra como para se teletransportar, e avistar bem ao longe e cada vez mais perto a piscina azulada criada pela pedreira.

– Um veio d’água aqui brotou.

Disse o bombeiro. Bem simpático. Musculoso. Ensinou para Maria as primeiras instruções.

– Para o rapel é preciso soltar a alma, soltar o grito guardado no estômago.

Do estômago ele vinha, o grito. Maria o engolia, Maria o afastava da garganta, feito o medo afasta o pensamento e parecemos não pensar, parecemos ser feitos de pedra, e a pedra não tem humanidade. Ou será a pedra gente que se impõe pelo caminho? Bloqueia no caminho o pensamento de ir e vir. E estáticos, parados, ficaram Maria e o pensamento, aguardando o bombeiro, simpático, musculoso, soltar a corda, correr o trilho, para o corpo se jogar, o corpo se abandonar na profunda piscina azulada lá embaixo.

– Pula, Maria, pula!

Parecia Maria ouvir. Mas não ouvia nada, não sentia nada, nem o bater do coração. Uma carapaça de (medo?) suor cobria toda a pele, e os poros tão dilatados que se podiam ver as veias e o sangue grosso, viscoso, por elas a se arrastar.

Maria se lembrava do dia em que a mãe morreu. Ela não viu a mãe morta, enterrada, no caixão. O pai não deixou. Desde então imaginava cenas, criava histórias tão reais quanto estar ali, naquele abismo, prestes a se atirar.

Por que o medo de se atirar? O que iria perder além de uma vida? Uma vida pode se perder, uma vida pode se viver uma infinidade de vezes, uma imensidão de tipos e máscaras de possibilidades de si: Maria-Maria, Maria-Joana, Maria-sua-mãe, Maria-seu-pai, até Maria-bombeiro-simpático-musculoso.

– Vai, Maria, vai!

E Maria caiu. Era uma queda lenta. Em câmara lenta. Como se a alma de Maria abandonasse o corpo e visse o próprio corpo assustado, congelado, paralisado, caindo, sumindo, consumindo a si na queda, na entrega, no abandono de um abraço que Maria queria dar em sua mãe.

 *

 María-María*

Era una vieja cantera donde María decidió llevar a Joana para hacer un sendero. El vuelo de los pájaros no se oía allí, porque las hojas secas de los árboles se rompían, caían, los oídos atentos a las hojas, atentos al corazón.

María comenzó a enamorarse de Joana poco a poco. Y en poco tiempo, el bombero enseñó los primero auxilios a las dos y a los tres chicos tan parecidos unos a los otros, que podrían ser trillizos si no fueran de colores diferentes. Y una pareja de recién casados, recién-construido-un hogar, que no parabas de darse besos y abrazos, llamó la atención de Joana.

—Ellos no tienen mucho tiempo.

Ellas no tenían mucho tiempo. Pero parecían siglos. Y todos los días, cuando salía del aula, Joana iba a encontrarse con María en la cafetería de la escuela. No podían besarse, abrazarse, acariciarse. Pero se miraban la una a la otra como para tele-transportase, y miraban bien a lo lejos y cada vez más cerca la piscina azulada creada a través de la cantera.

—El agua brotó.

Dijo el bombero. Muy simpático. Musculoso. Enseñó a María las primeras instrucciones.

—Para rapel es necesario liberar el alma, liberar el grito almacenado en el estómago.

Del estómago salió el grito. María tragaba, María apartaba de la garganta, tenía miedo, apartaba este pensamiento y parecía no pensar,  parecía estar hecha de piedra, y la piedra no tiene humanidad. ¿O será la piedra que se impone en el camino? Bloqueaba en camino al pensamiento de ir y venir. Y estáticos, inmóviles, se quedaron María y el pensamiento, esperando que el bombero, amable, musculoso, suelte la cuerda, corra por la corredera, que su cuerpo se arrojara, su cuerpo se abandonara en la profunda piscina azul, allí debajo.

— ¡Salta, María, salta!

María parecía oír. Pero no oía nada, no sentía nada, ni siquiera el latido de su corazón. Un caparazón de (¿miedo?) sudor cubría todo su piel, y los poros tan dilatados que se podían ver las venas y la sangre gruesa, viscosa, que corría por ellas.

María recordó el día en que su madre murió. No vio a su madre muerta, enterrada en el ataúd. Su padre no la dejó. Desde entonces se imaginaba escenas, creando historias tan reales cuando estaba allí, en aquel abismo, a punto de arrojarse.

¿Por qué tenía miedo a tirarse? ¿Qué tenía que perder, aparte de una vida? Una vida se puede perder, una vida puede vivir una infinidad de veces, una inmensidad de  tipos y máscaras de posibilidades de sí: María-María, María-Joana, María-su madre, María-su padre, hasta María-bombero-amable-musculoso.

— ¡Vamos, María, vamos!

Y María se cayó. Era una caída lenta. En cámara lenta. Como si el alma de María abandonase su cuerpo y mirase su cuerpo tan asustado, congelado, paralizado, cayendo, desapareciendo, consumiéndose en la caída, en la entrega, en el abandono de un abrazo que María quería dar a su madre.
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Extraído de Vinte e um / Veintiuno, Patricia (Gonçalves) Tenório. Tradução / Traducción: Alexandra Viscrian, David Pérez García. Madrid, España: Mundi Book, 2016.

** Patricia (Gonçalves) Tenório escreve prosa e poesia desde 2004. Tem dez livros publicados, O major – eterno é o espírito (2005), As joaninhas não mentem (2006), Grãos (2007), A mulher pela metade (2009), Diálogos e D´Agostinho (2010), Como se Ícaro falasse (2012),  Fără nume/Sans nom (Ars Longa, Romênia, 2013), Vinte e um/Veintiuno (Mundi Book, Espanha, abril, 2016), e A menina do olho verde (livros físico e virtual, Recife e Porto Alegre, maio e junho, 2016), traduzido para o italiano por Alfredo Tagliavia, La bambina dagli occhi verdi, publicado em setembro/outubro, 2016 pela editora IPOC – Italian Paths of Culture, de Milão.  Defendeu em 17 de setembro de 2015 a dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, linha de pesquisa Intersemiose, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, “O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: um romance indicial, agostiniano e prefigural”, com o anexo o ensaio romanceado O desaprendiz de estórias (Notas para uma Teoria da Ficção), sob a orientação da Profª Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino, publicada em setembro/outubro de 2016 pela editora Omni Scriptum GmbH & Co. KG / Novas Edições Acadêmicas, Saarbrücken, Alemanha. Contatos: [email protected] e www.patriciatenorio.com.br

*** A lagoa azul de Maria-Maria, Jaboatão dos Guararapes, PE – Brasil. La laguna azul de María-María, Jaboatão dos Guararapes, PE – Brasil.

Obs: Imagens enviadas pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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