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O ponto de partida e o foco desta reflexão é o seguinte: o Deus vivo, como oceano inesgotável, transborda em toda a realidade da Criação e, assim, comunica-se como Deus da vida, capaz de criar, recriar, restaurar, transformar velho em novo, operar reviravoltas em pessoas e em coletividades. É este o horizonte em que se dá a missão da Igreja.
Ao falar de missão, devemos compreendê-la em dois sentidos. O primeiro é o sentido objetivo, é o ato de Deus de enviar-nos em Seu Nome, para dar efetividade histórica a Sua própria obra. Na verdade, conservar, restaurar e consumar a vida são atos do próprio Criador, origem transcendente da vida. A missão é, antes de tudo, “missio Dei” (missão de Deus). É a intuição de toda a Bíblia: criar, salvar, consumar a vida são ações de Deus. É assim como as Escrituras falam das intervenções de Deus como “go’el”, isto é, redentor, ou restaurador da justiça, e como recriador. Isto já é claro na Lei ou Pentateuco e particularmente na corrente profética. A apocalíptica salienta sobretudo a ação de Deus como consumador da vida e da história. Os Salmos nos dão testemunho de como a piedade do povo de Deus se manifesta na incansável expectativa de que, finalmente, Ele se levante para restaurar Sua obra, o que implica no restabelecimento da justiça social e no soerguimento das pessoas, das categorias e dos povos necessitados. É justamente isto a manifestação da glória de Deus: “Gloria Dei, vivens homo” (A glória de Deus é o homem em plena vida”) (Santo Irineu de Lyon). E Dom Oscar Romero, mártir de El Salvador, parafraseou: “A glória de Deus é o pobre de pé”.
O sentido subjetivo é “missão” percebida como “sentir-se enviado(a)” para, pela ação histórica, dar efetividade à obra de Deus no mundo. É assim que se descrevem na Bíblia as vocações. De repente, as pessoas tomam consciência de ser chamadas a assumir na sociedade, em determinado lugar e em determinada circunstância histórica, a “missão de Deus”. Algumas figuras bíblicas são particularmente significativas a esse respeito. Pensemos em Moisés (cf. Ex 3), em Elias (cf. 1Rs 19), em Ana, mãe do profeta Samuel (cf. 1Sm 2, 1-10), em Jeremias (cf. Jr 1), em Ezequiel (Ez 1-3), em Judite (cf. Jt 9; 16, 1-17), em Maria de Nazaré (cf. Lc 1), nos discípulos de Jesus (cf. Mc 1, 14-20), de São Paulo (cf. At 9)… A consciência de Jesus é claríssima quanto a isso, por exemplo em João, cap. 5. Para a Bíblia, Deus é Emanuel, está conosco, opera em nós e através de nós. Se somos o Corpo de Cristo, nós é que o tornamos presente neste mundo. Deus, na verdade, não se revela em si mesmo, manifesta-se mediante a dimensão detranscendência em nós. Pois só somos realmente “em nós”, só nos possuímos a ponto de poder entregar-nos por amor, quando somos “para além” de nós, a saber, quando somos livres. Deus é a dimensão secreta que nos humaniza pela liberdade e, assim, nos faz vencer a tentação de ser “para nós”. Quando nos enganamos e nos fechamos “para nós”, nos degradamos abaixo de nós (cf. Gn 3).
“Missão” é, então, ato divino de enviar e consciência humana ser enviado(a). Quando usamos o vocábulo “missão” para designar o conteúdo daquilo que a Igreja tem de fazer como tarefa para desempenhar essa embaixada, mais confundimos que esclarecemos. Muito frequentemente se fala de “evangelização” (proclamação) e “missão” (gestos concretos), como se fossem duas tarefas distintas ou duas frentes do atuar da Igreja. Não parece conveniente tal maneira de falar, pois confundem-se, assim, o ato de enviar e a correspondente consciência de ser enviado(a) com o conteúdo da tarefa para a qual somos enviados(as).
Perguntar para que somos enviados(as) é perguntar pela finalidade, o objetivo e o conteúdo do envio, ou seja, da missão. Ora, os evangelhos são muito claros a esse respeito, assim como profetas e profetisas. Jesus se sente enviado para proclamar a Boa Nova. No seguimento de Jesus e como Seu Corpo na história, a Igreja não tem outra tarefa, a não ser esta: proclamar as Boas Novas, na mesma perspectiva aberta por Jesus, ao inaugurar Seu ministério em Nazaré com a leitura da profecia de Isaías, cap. 61. A Igreja é mandada fazer só isto e tudo isto: Evangelizar. Seu ser, seu fazer e seu dizer têm de ser unicamente proclamação da “Boa Notícia aos pobres”. Não nos é permitido falar de “evangelizar” e, por acréscimo, também fazer outras coisas. A Igreja é enviada só para evangelizar.
Toda a confusão deriva de como compreendemos o que seja “evangelizar”. A melhor resposta é a do próprio Jesus: toda a Sua vida, por obras e por palavras, é proclamação do Reinado de Deus (cf. Mc 1, 14-15). Por isso, não pode haver dicotomia entre “evangelismo” e “missão”, “proclamar” e “servir”, entre “evangelização” e “diaconia”, entre “liturgia” e “engajamento político”. Por obras e por palavras, a Igreja o que faz é proclamar o Evangelho. As ações, os gestos são sinais que anunciam que o Reino de Deus está entre nós, as palavras nos chamam a prestar atenção à realidade concreta e assim reconhecer os “sinais” em sua intrínseca “eloquência” de gestos que falam (cf. Is 43, 16-21; Lc 7, 18-23). Há nítida precedência dos “sinais”, a saber, do ser e do fazer, do testemunho, portanto, em relação às palavras (cf. At 1,1). Disso tinha plena consciência São Francisco de Assis: “Evangeliza sempre, fala se necessário!” Por isso, na Igreja até seu pecado tem de ser veículo de evangelização, isto é, até – e sobretudo – nossa condição pecadora é proclamação viva da graça de Deus, presente, atuante, transformadora da fragilidade humana, Ele é Emanuel, Deus-conosco, radicalmente solidário com nossa fraqueza (cf. Fl 2, 1-11).
O caminho, o método (método quer dizer “caminho”) para proclamar o Evangelho nos é também indicado claramente pelo Novo Testamento, é o serviço, a diaconia. Servir não é algo que se acrescente à proclamação, não, é o próprio método da proclamação. Jesus se identificou com a corrente profética, ou seja, com a mais típica expressão da Palavra de Deus, mas compreendeu essa tarefa sob a imagem do Servo de Deus, conforme a profecia de Isaías (cf. Is 42; 49; 50; 52-53). Por isso, tudo na Igreja é “envio” para “proclamar” a Boa Nova mediante o “serviço”, à maneira do serviço. Assim, a “diaconia” é o que mais profundamente caracteriza a identidade da Igreja, seu jeito de ser. E diaconia, nosso ser serviçal, se desdobra em vários aspectos para corresponder às diversas dimensões da vida humana:
- Serviço de ensino, ou da Palavra, mediante o qual, pela profecia, pela sabedoria e pela lei, vão sendo indicados os caminhos de Deus em nossa existência quotidiana, quer em nossas relações privadas, interpessoais, quer em nossas relações públicas, na sociedade mais ampla e mediante suas estruturas. Como compreender na Igreja um ensino autoritário? Na verdade, a assimilação da Palavra forma o “sensus fidelium”, algo radicalmente comunitário. Como bem percebeu Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, nós nos educamos em comunhão” (cf. 1Jo 2, 20-21. 27);
- Serviço da liturgia, em linguagem religiosa, para responder à necessidade humana de explicitar por gestos e palavras, “dramatizar” aquela dimensão que estrutura profundamente nosso ser: a relação com o mistério-fonte da vida. Necessitamos celebrar, dar graças, manifestar nosso ser para crescer alegremente e plenamente, é o momento “estético” da vida, que nos deve indicar os caminhos da prática “ética” e nos animar comunitariamente para cumprí-los. Como compreender uma liturgia autoritária, centrada na liderança, clerical, não participativa mediante tarefas complementares, toda a comunidade em atitude de participação ativa?
- Serviço sociopolítico, pela ação de solidariedade, que vai do socorro imediato às vítimas do sistema do mundo, “os caídos da guerra”, como dizia Dom Helder, serviço de amor, de consolo e de ajuda imediata às pessoas e categorias marginalizadas e excluídas, até à luta pela justiça e transformação das estruturas injustas e a preservação e renovação da criação. Como compreender que lutemos por direitos humanos e suportemos que não haja respeito aos direitos das pessoas na Igreja? Como anunciar uma sociedade democrática e solidária e “suportar” igrejas elitistas, centradas em hierarquias e habituadas a processos autoritários?
Uma visão unitária de evangelização, que supere as dicotomias, tão frequentes e presentes no discurso até mesmo de importantes lideranças eclesiásticas, é imprescindível para a Igreja assumir no mundo a tarefa para a qual é enviada. Do contrário, como é muito frequente acontecer, continuamos a pensar que nossa tarefa prioritária sejam o culto religioso e o “falar” sobre Jesus, enquanto a tarefa sociopolítica de transformação do mundo já não teria para nós a mesma obrigatoriedade. Seria algo acrescentado que assumimos se temos tempo de sobra. Os três aspectos mencionados acima, porém, são constitutivos da tarefa de evangelização que é algo unitário. Baste ler com atenção o episódio da cura do cego de nascença em João, capítulo 9, como o homem, uma vez curado, vai percebendo progressivamente o mistério de Jesus e adquire coragem de testemunhar de sua experiência de sentir-se transformado pela “abertura da visão”, até perante as autoridades, sem medo. Modelo magistral de articulação profunda entre ação social e evangelização (cf. neste blog, “Da Cegueira à Visão – Ação Social e Evangelização).
Não se pode falar de culto e de evangelismo como se fossem a “missão essencial” da Igreja, enquanto o compromisso sociopolítico seria “tarefa supletiva”, só assumida por nós se o Estado ou a sociedade civil não o assume. Temos de distinguir. O tipo ou o modo de nossa ação social e política depende de cada contexto histórico. Em cada época ou lugar será diferente. Mas a vocação para encarnar o carinho de Deus, mediante gestos e palavras historicamente significativos, de solidariedade, de libertação, de transformação, “para que o mundo seja liberto da opressão, da injustiça e da fome”, é dimensão essencial da proclamação do Reino de Deus (cf. Lc 4, 16-30; 10; Mt 10). Afinal, o mundo é obra de Deus, por amor a ele entregou Seu próprio Filho e envia Seu Espírito Santo. Ele mesmo está comprometido com a redenção e a consumação de Sua obra, que é a Criação (cf. Rm 8). Esta é a certeza que anima todas as pessoas que Lhe são fiéis, conforme o testemunho das Escrituras, desde Moisés até Jesus e seus discípulos e discípulas. Como é possível sentir-se comprometido(a) com Deus pela fé e não sentir que a fé é, necessariamente, participar do combate para que a obra de Deus seja arrancada do poder das trevas, como nos ensina Apocalipse? (cf. Rm 13, 11-14; Ef 6, 17). E este não é apenas desafio vindo dos países pobres, é desafio para a Igreja na universalidade dos povos,
Sem visão unitária da evangelização, reduzimos a vida da Igreja a aspectos religiosos e culturais. Ora, cultura e religião não estão profundamente enraizadas na economia e nas relações de poder (política)? Na verdade, a partilha dos bens (economia) e as novas relações de poder na sociedade (política) são o núcleo do anúncio do Reino de Deus (cf. Lc 3, 10-14; Mc 10, 35-45; 12, 38-44), o qual Jesus compara muitas vezes com um banquete para todos. O serviço sociopolítico da Igreja e de cada qual de seus membros é essencial e nos obriga, radicalmente, como imperativo da própria fé. Não se trata apenas de “consequência” da fé, uma espécie de “obra de misericórdia”, não, trata-se do próprio exercício essencial da fé: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu único Filho” (Jo 3, 16). E Ele veio “para que tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10, 10). Lutamos pela redenção, o mesmo que transformação ou libertação, deste mundo não apenas “porque” somos crentes no Deus da vida. Segundo o conjunto das Escrituras, é algo bem mais profundo e radical: somos crentes “enquanto” nos engajamos no combate de Cristo (cf. 1Cor 15, 20-26) para resgatar a obra de Deus que é vitória sobre “as estruturas do sistema deste mundo” (f. Rm 12, 1-2). Mística (liturgia), teologia (evangelismo) e ação (política) são simultaneamente três aspectos do mesmo ato vital de adoração a Deus (“obediência da fé”), e de proclamação (evangelização) de Sua presença dinâmica e maravilhosamente operante (transformação). É para isto que a Igreja vive no mundo movida pela consciência permanente de estar sendo “enviada” ao mundo; sabendo, sempre, por outro lado, que ela mesma é parte deste mundo de trevas, injusto e pecador. É ruptura com o mundo para inclinar-se solidária sobre ele. Este é o milagre da fé: saber-se “objeto” da obra de Deus e sentir-se, ao mesmo tempo, “sujeito” dessa mesma obra para a reconciliação e transformação do mundo (cf. 2Cor 5; Ef 2): “Somos embaixadores(as) da reconciliação, ainda que “carreguemos esse tesouro em vasos de barro”.
Isto é particularmente decisivo quando, nas sociedades urbanas de hoje, a Igreja tem de ir ao encontro das pessoas, dos grupos e dos povos, para além dos próprios espaços e da própria linguagem religiosa, para infundir, na quotidiana convivência humana, os valores do Reinado de Deus. A competência da Igreja se mede hoje, não primeiramente por atingir os próprios membros, em seu recinto próprio, mas por alargar sua ação à sociedade de modo a alcançar, com os valores do Reino, quem está fora dela. O caminho hoje é dos templos para as praçaspúblicas…Assim aconteceu, por exemplo, quando das discussões e da redação do ECA (“Estatuto da Criança e do Adolescente”), quando pessoas cristãs colaboraram com outros agentes da sociedade e se chegou, assim, a produzir uma lei que não reflete e regula a “realidade estabelecida”, mas pretende “criar” nova realidade, é uma lei “profética” para criar o futuro.
Na verdade, em toda a sua longa história e tradição, a Igreja nunca quis reduzir-se a ser uma “religião” entre outras, mas um povo cuja tarefa é “reinventar o mundo” de acordo com os valores do Reino. É verdade que nem sempre acertou, e como errou! Mas o fato é que sempre pretendeu “fazer história”, metendo-se em economia, em relações sociais, em política e em cultura. Isto não deve restringir-se a convicção de algumas pessoas inquietas, tem de chegar a ser consciência no quotidiano de todas as nossas comunidades. Mesmo que adotemos “linguagem religiosa”, o conteúdo de nossa mensagem não é a religião, mas nova proposta de vida para o mundo todo. Assim como vemos na Bíblia, que “é um livro religioso, mas não um livro de religião” (Pastor Carlos Cunha, presbiteriano, já falecido), pois alcança todas as dimensões da vida humana.
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB…..