Maria-Clara23

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Com certeza este foi um aniversário que o Ocidente não gostaria de ter celebrado: domingo, 11 de setembro de 2016. Neste dia, há quinze anos, o mundo se viu mergulhado no horror dos acontecimentos de Nova York e Washington, com as torres gêmeas do World Trade Center derrubadas, o Pentágono atacado e milhares de vítimas soterradas sob escombros da capital do ”glamour”, do consumo e da estética.

O que se seguiu àquele 11 de setembro e continua até hoje tampouco é digno de celebração. Após os terríveis estragos provocados pela violência em seu país, vimos as tropas americanas – numa ação que não devia ser mais que policial – semear a retaliação e a vingança do outro lado do mundo. O que houve apresentou abundância de efeitos colaterais indesejados, sendo o único triunfo a festejar a queda do regime autoritário do Talibã.

O Oriente Médio, que irrompeu no coração do Ocidente de forma violenta e mortal, transformou-se em um barril de pólvora e de horror.  A violência que explodiu aqui deste lado do hemisfério continua a exercer sua dinâmica mortal do lado de lá. Países inteiros são destruídos pelas bombas e armas das potências ocidentais.  Ao mesmo tempo, as investidas dos radicalismos fanáticos de 15 anos atrás parecem brincadeira de criança perto dos horrores perpetrados pelo ISIS ou Estado Islâmico.  A mídia e as redes sociais transformaram-se em palcos onde o horror das execuções é exibido para quem quiser assistir.

A Europa amarga o fruto apodrecido do terror.  Milhares de migrantes chegam às suas costas diariamente. Atravessam países e continentes fugindo de uma guerra que não é deles, em busca de melhores condições de vida.  Muitos morrem na tentativa, tragados pelas águas do mar Mediterrâneo, convertido em imenso cemitério líquido.  Os rostos das crianças nos olham todos os dias aterrorizados, perplexos, mudos de espanto.  Ou então fechados para sempre como os do pequeno Aylan Kurdi, que aportou morto nas praias da Turquia.

Há 15 anos, o dia 11 de setembro ocupa a mídia, que esquadrinha sem cessar aqueles terríveis acontecimentos de quinze anos atrás. Tenta-se entender e analisar suas causas, seu significado, seus horrendos efeitos. No entanto, a celebração deste macabro aniversário parece se impor como constatação do diabólico processo da violência, que qual uma espiral auto reprodutiva vai gerando mais e mais violência. É indispensável perceber sua deprimente inutilidade.

Desde os tempos bíblicos, a humanidade administra mal seus conflitos, acreditando que revidar a violência com violência é uma solução adequada para defender a vida. A própria Bíblia, por outro lado, revela a percepção do ser humano de que tal procedimento só faz aumentar as proporções da força predatória da morte. E por isso procura salvar a vida, que pode esvair-se sob o império da violência.

Para as religiões semitas monoteístas, a vida de todo ser vivo está no sangue. E, mesmo se em algumas delas existiu ou existe a valorização de atos que levam ao derramamento de sangue (pensemos nos mártires cristãos dos primeiros séculos), isso pode ser interpretado pelo entendimento de que o sangue, enquanto vida, é no homem um elemento divino. O que expia é o sangue, mas o sangue expia porque é a vida. E se, religiosamente, se considerou ou se considera o derramamento de sangue participação na santidade de Deus, o que move essa concepção é o respeito pela vida.

Quando o sangue de uma pessoa é derramado, sua vida se acaba, pois a vida está no sangue. E em nenhum lugar dos três livros sagrados das religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – é dito ser lícito derramar sangue humano. A vida é um dom de Deus, por isso ninguém pode derramar o sangue de outra pessoa. E nem tirar a própria, como acontece nos tristíssimos episódios de homens e mulheres bombas que se explodem e a outros, banhando o espaço ao redor de si de sangue vital. O que é santo e digno de respeito é a vida. O desprezo pela vida é, portanto, a raiz de toda violência. A vida aí entendida como o que se recebe e o que se dá. Na raiz de toda violência está uma recusa de receber e de dar, em nível pessoal, comunitário e social.

Nestes dias que se seguem ao aniversário mais triste que a humanidade já celebrou nos últimos tempos, e quando os olhos aterrorizados do mundo se voltam para a Europa, que delibera se fecha ou abre as portas para que mais migrantes entrem; quando países inteiros, como a Síria, jazem destruídos e reduzidos a pó, escombros e sangue; quando as nações ricas e poderosas escolhem como caminho aumentar a quantidade de bombas e armas letais atiradas nos países mais fracos do Oriente Médio, é preciso que nosso coração não se torne indiferente e não remova de si a compaixão.  É preciso que nossas energias se voltem para esse difícil aprendizado de dar e receber a vida, que é frágil apesar de bela e santa, e portanto precisa ser cuidada com desvelo.

Obs:  Fé, justiça e paz – O testemunho de Dorothy Day (editoras Paulinas e PUC-/Rio), organizado por Maria Clara Bingemer juntamente com Paulo Fernando Carneiro de Andrade.

Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected]  

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