(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Diante do absurdo do mal e da crueldade que vitima inocentes e extermina povos inteiros em escala industrial, alguns escolhem a indignação, a denúncia, outros entram em depressão e se demitem do pensamento e da reflexão que possa ser explicativa. Outros optam pelo silêncio. Essa foi a opção do Papa Francisco em sua visita a Auschwitz: recolher-se em oração diante do lugar dos horrores onde aconteceram coisas que não têm explicação e que, portanto, desafiam o entendimento humano.
A pé e sozinho, no silêncio da oração, o Papa atravessou o portão do campo de concentração, encimado pelas palavras “o trabalho liberta”, mote nazista que reforça o escárnio cruel sobre aquilo que na verdade consistia em um lugar onde imperava o
trabalho escravo e os horrores do extermínio de mais de um milhão de judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, opositores políticos e homossexuais.
Terceiro papa a visitar este memorial, patrimônio da Unesco, Francisco preferiu não fazer discursos. Suas únicas palavras foram as que escreveu no livro de honra: “Senhor, perdoe tanta crueldade”. Auschwitz era o quartel general da chamada “solução final”. O termo “Solução Final” foi empregado para se referir ao plano de aniquilação total do povo judeu. O genocídio, ou extermínio em massa dos judeus, foi o ápice de uma década de graves medidas discriminatórias contra eles, e que cresciam em severidade a cada ano.
Na primavera de 1942, Himmler – comandante da SS – determinou que Auschwitz tornar-se-ia uma “fábrica” de extermínio em grande escala. Ali, cerca de um milhão de judeus, de diversos países da Europa, foram assassinados. Os métodos eram os mais variados. As SS e a polícia alemã assassinaram perto de 2.700.000 judeus utilizando asfixia por gás venenoso, fuzilamento e enforcamento. Outros
3.300.000 sucumbiram devido às atrocidades cometidas contra eles por fome, maus- tratos, espancamento, frio, doenças, experiências “médicas”, e outras formas de crueldade inimagináveis. Como tudo era cuidadosamente documentado com fotos, datas e descrições pormenorizadas na impecável organização de Adolf Eichmann, hoje o mundo pode ver os rostos das vítimas e constatar quantas mulheres, crianças, idosos, havia entre eles.
O que se passou ali nos dá vertigem. É muito difícil entender o porquê de o ser humano agir com tamanha insensibilidade e crueldade. A teologia cristã se viu interpelada pelo fantasma de Auschwitz. A pergunta do grande pensador judeu Hans Jonas atingiu o coração de teólogos como o protestante Jürgen Moltmann e o católico Johann Baptist Metz, por exemplo.
Sua reflexão surge da terrível experiência de ser sobrevivente da descomunal tragédia da shoah, do holocausto. Seu pensamento e sua luta para entender o que é ininteligível se transformou neles em vocação teológica precedida por esse sofrimento e essa dor. A questão por Deus brotará do mais profundo de suas entranhas na medida em que se perguntarão por que estão vivos ao contrário de tantos milhões de outros. Ao mesmo tempo se perguntarão onde está Deus quando inocentes são massacrados em escala industrial em nome de uma perversa ideologia.
Ambos encontrarão na Paixão de Jesus Cristo o paradigma para a paixão do mundo e da humanidade. E justamente essa Paixão mostrará que Deus está crucificado com as vítimas, em silêncio, com e como elas. E diante desse silêncio do Deus Crucificado, Deus se cala, tornado impotente por uma violência à qual não pode revidar, mas apenas sofrer, com-padecer. E este silêncio é mais eloquente do que qualquer palavra pronunciada. A Palavra interpretativa de Deus sobre o que se passou em Auschwitz é análoga à Palavra interpretativa do Pai de Jesus sobre o acontecimento do Gólgota, ou no acontecimento da compaixão de Deus no Mistério Pascal.
Parece-nos ser esse silêncio do próprio Deus que o Papa Francisco quis imitar. É nele que desejou mergulhar a fim de tomar sobre si a dor de uns e o pecado de outros, implorando para todos o perdão divino. A caminhada silenciosa do Papa em Auschwitz é diferente das visitas de seus outros dois antecessores, João Paulo II e Bento XVI. Enquanto estes optaram por falar e rezar em voz alta, Francisco decidiu calar-se com o silêncio divino, experimentando a memória que emana do campo dos horrores e esperando que seu silêncio orante seja cheio da esperança de que tal genocídio nunca mais se repita.
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