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” é nesse contexto de conflitos, de sequestro do estado a favor da acumulação privada e de retomada dos projetos neoliberais ante a crise fiscal no país que, em pouco mais de três meses, o país escolherá novos Vereadores e Prefeitos para o desafio de administração de nossas cidades.”
Vivemos um tempo de agressiva acumulação do capital, que embora presente na esfera produtiva, se distanciou dela e se agigantou na reprodução financeira, com transações em moedas, títulos públicos, ações privadas e novos produtos, os chamados derivativos. A contradição e crise desse processo, porém, se deu a partir de 2008, quando a opção pelo alto retorno desses “investimentos” (em derivativos) destruiu montanhas de riquezas aplicadas nesses ativos, arrastando patrimônios, instituições e, posteriormente, finanças de governos atingidos pela crise, após o uso de seus orçamentos nacionais como amparo ao caos gerado.
Esse modo de acumulação do capital subtrai da esfera produtiva e das receitas públicas uma imensa massa de valores. Da primeira desvia os fundos que deveriam financiar máquinas, matérias-primas, força-de-trabalho, com o atrativo da remuneração a juros ou ganhos especulativos fora do circuito Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro. Das finanças públicas subtrai as receitas da tributação, transferidas do investimento público e do financiamento de direitos sociais para a conta da dívida pública e seus encargos, juros e amortizações, numa economia cavalar de receitas através do superávit primário.
Nesse desenho improdutivo e contrário ao desenvolvimento, o estado foi aprisionado pelo capital, tanto através de normas jurídicas generosas (livre circulação de capitais, câmbio flutuante, desonerações e incentivos) a favor de sua reprodução ampliada, quanto por se transformar também em tutor da disciplina fiscal a favor dos compromissos e contratos do ente público com o capital representado pela dívida pública. Nesse sentido, embora tenhamos, contudo, vários instrumentos e normas para o desenvolvimento das cidades, da defesa civil ao saneamento, da habitação aos resíduos sólidos e a mobilidade, não se vê regência, harmonia e prioridade na aplicação desses instrumentos a favor da maioria dos cidadãos. O desenvolvimento urbano sustentável não casa com a gestão financeira do estado, que embora deva ser o condutor constitucional da construção de projetos para o bem-estar da sociedade, é privado dos meios financeiros necessários para tais fins, pelas razões antes expostas. O estado se encontra também tutelado pelos interesses de acumulação de frações do capital, operando no espaço urbano, voltadas à produção de bens e serviços que alimentam os mercados de consumo, o acesso à “saúde” e à educação enquanto mercadorias, aos automóveis, às moradias de luxo, embora cercadas por bairros insalubres, desprovidos de infraestrutura. Há resistências, porém, claras, a essa incapacidade de responder aos direitos urbanos, seja na luta pela moradia, pelo transporte público, na cultura etc. O Ocupe Estelita foi o maior exemplo disso.
Pois bem, é nesse contexto de conflitos, de sequestro do estado a favor da acumulação privada e de retomada dos projetos neoliberais ante a crise fiscal no país que, em pouco mais de cinco meses, o país escolherá novos Vereadores e Prefeitos para o desafio de administração de nossas cidades. Os municípios são hoje o elo fiscal mais frágil da federação. Mesmo as grandes capitais dependem de transferências constitucionais e voluntárias da União para assegurarem a manutenção e o desenvolvimento de políticas essenciais às suas populações. Com déficits monstruosos em habitação com dignidade, transporte público de qualidade, abastecimento de água, saneamento, atenção básica à saúde, acesso universal e de qualidade ao ensino fundamental, a maioria das grandes cidades, contudo, não deixou de oferecer imensos atrativos aos empreendimentos privados que oferecem negócios, serviços e mercadorias às cadeias produtivas do setor terciário e para a construção civil.
Para isso, de um lado, o poder público (municipal e estadual) se associa aos investimentos privados na produção da infraestrutura (água, saneamento, energia, telefonia, além da recuperação e ampliação de avenidas e vias de acesso a esses empreendimentos), praticando também a redução do ISS para alguns desses empreendimentos, como foi o caso dos hospitais privados assim beneficiados, também com as ações que deram suporte à implantação de shoppings centers, como o RioMar, no início da zona sul em Recife. O mesmo poder público, porém, tem sido incapaz de encarar a precariedade da moradia em palafitas próximas desse empreendimento comercial que, como em outras vezes, serviu também para adensar seu entorno com novas construções de imóveis residenciais e comerciais. O mesmo Recife, que viu o surgimento e ampliação de empreendimentos privados de educação superior, com subsídios federais (Prouni e Fies) e agora também municipais (como se fosse competência municipal oferecer matrícula no ensino superior com renúncia de arrecadação a favor de faculdades privadas), é a cidade onde vivem mais de 90 mil analfabetos, a capital que não garantiu acesso às creches nem a partir das metas do Plano Nacional de Educação de 2001, a Lei 10.172, onde o Ministério Público propôs Termo de Ajustamento para que a gestão garantisse vagas na educação fundamental às suas crianças e jovens.
Na saúde, em acelerada privatização no país, também no Recife, junto ao conhecido “Polo Médico” (hospitais de grupos empresariais locais paulatinamente adquiridos por redes nacionais), indicadores de saúde pública de países pobres se espalham periodicamente nos dados estatísticos. As ocorrências de dengue e agora de chikungunya e zika, com os casos de microcefalia concentrados (segundo estudo da Fiocruz, 77% dos casos registrados) em mães que vivem em comunidades insalubres do ponto de vista do desenvolvimento urbano, revelam que não temos a cidade que deveríamos ter. Na cultura, apesar do imenso carnaval, não deslancha o sistema nacional de cultura. A cidade viu paralisar seu sistema de fomento à cultura há anos, vê equipamentos fechados, como Teatro do Parque, dispondo de pouquíssimas bibliotecas públicas e equipamentos culturais fora dos shoppings, do centro e da zona sul.
Que papel caberá às forças de esquerda nas eleições de 2016 na produção de uma cidade pensada e construída de forma democrática, visando à redução das desigualdades e a geração do bem-estar para todos os seus habitantes? De que forma a sociedade poderá atuar para enfrentar o atrelamento do estado-poder local ao processo de acumulação do capital “urbano”? Por isso, de que forma deverá se apresentar uma frente de esquerda junto à sociedade? Como assegurar o fortalecimento do planejamento urbano integrado, as audiências públicas, a definição de metas de desenvolvimento a serem periodicamente aferidas, construídas com a sociedade a partir de indicadores de direitos sociais essenciais à qualidade de vida na cidade?
Uma frente de esquerda deve pautar-se pelo compromisso com a radical democratização da gestão, com a implantação da tributação progressiva, com a auditoria dos benefícios fiscais, da dívida pública municipal e da dívida ativa tributária, com a definição de metas do desenvolvimento urbano, da qualidade e profissionalização dos serviços públicos, com o planejamento urbano voltado à inclusão social com direitos fundamentais, com a máxima transparência e o controle social. Se todos constroem a cidade, por que não usufruir dela?