(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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De novo, o horror, gratuito e inexplicável. Em uma boate gay de Orlando, o afegão Omar Mateen, de 29 anos, disparou sua poderosa metralhadora sobre os frequentadores. Era sábado à noite, o local estava cheio de jovens. Saldo de 50 mortos e 53 feridos. O atirador, casado e pai de família, figura entre os mortos. Quando a polícia entrou, tirou-lhe a vida.
Mais um massacre, mais uma declaração de fracasso da humanidade em sua dignidade. Novamente o relato da dor, as imagens do sofrimento estampadas na mídia. As lágrimas, as mensagens antes da morte, as fotos. Tudo horrível.
Mas o que mais me impressionou desta feita foi ler que a mulher de Omar sabia de seus planos e havia mesmo ido com ele mapear a Disney, lugar onde, pelo visto, ele pretendia realizar outro massacre. Algo o fez optar pela boate gay, mas um dos alvos planejados era a Disney.
Isso me encheu de horror e me convenceu que a vida hoje é um contínuo e ininterrupto sobressalto, um nunca mais ter sossego nem tranquilidade apenas devido ao fato de ser humano e viver neste planeta. Por maior que seja minha implicância contra o parque temático da Disneylandia, que acho fútil, idiotizador, levando seus frequentadores apenas a consumir mais e mais ideologia, brinquedos inúteis e outros fetiches pós-modernos, meu horror persiste por se tratar de um lugar onde comparecem majoritariamente crianças.
Isso revela que Omar Mateen tinha entre seus alvos principais e deliberados crianças da idade de seu filho ou mesmo mais novas. Mapeava o local para fazer seus planos macabros e acionar ali sua metralhadora, se não houvesse sido abatido pela polícia na boate gay. Este lugar onde meus netos já foram mais de uma vez, já que meus filhos não participam de minha antipatia pelo local, podia ter sido o palco onde o atirador pretendia espetacularizar suas frustrações e recalques vários de vida inteira. E com as minhas amadas crianças lá dentro.
É claro que quando penso em meus netos a barbárie me dói mais no peito. Me atinge mais, na medida do amor por eles. Mas o fato é aterrador em si mesmo, ainda que meus netos não fossem personagens, ainda que a tragédia não fosse com os seres que amo.
Um ser humano armar-se com a mais requintada e poderosa das metralhadoras e planejar cuidadosamente o assassinato de pessoas indefesas é algo monstruoso. O fato de que tudo isso possa ser dirigido a crianças é mais monstruoso ainda. Crianças pequenas, incapazes de se defender, pois não têm ainda sequer entendimento. Os frequentadores da boate Pulse também foram tomados totalmente de surpresa. Até porque o atirador frequentava a boate. Apesar de casado, Omar Mateen era usuário de sites de relacionamento gay e frequentador da boate.
Sobre sua vida privada, não queremos nem devemos comentar, embora inevitavelmente detalhes de sua infância e adolescência tenham vindo à tona após o massacre que perpetrou. E esses nos dizem ter sido Omar vítima de cruel e constante bullying na escola que frequentava. A hostilidade dos colegas, que chegava até a agressão física, se devia à sua aparência: gordinho e “de outra raça”, descendente de afegãos. Mais uma vítima da discriminação e do racismo que impera na sociedade onde vivia e que se vinga de sua frustração e sua dor provocando a dor alheia.
Preocupado em afirmar sua masculinidade, Omar Mateen trabalhava como segurança, andava armado, carregava em si todos os símbolos do macho americano. Mas quando a pressão dentro de si ameaçava explodir frequentava sites de relacionamento gays e boates gays. Sua homofobia transbordava em identidade bem próxima daqueles a quem tanto odiava e tanto desejava exterminar e combater. E na boate Pulse, no último sábado, explodiu pela última e definitiva vez, matando os que formavam parte do grupo que lhe ensinaram a odiar, mas ao qual temia pertencer.
Omar Mateen, o assassino de 49 pessoas cuja maneira de amar odiava, é um produto típico do processo para formar homens em um sistema machista. E o adulto Omar, que não hesitou em descarregar sua arma sobre pessoas indefesas e pretendia fazer o mesmo com crianças na Disney, carregava em si o menino machucado pelas cruéis brincadeiras dos colegas sobre sua raça, sua cor, seu corpo.
A impressão é que não estamos minimamente seguros em lugar algum. Queremos proteger os que amamos, mas não temos poder para isso. A qualquer momento pode cruzar nosso caminho um ser cruelmente ferido pela sociedade que construímos. Um ser como Omar Mateen. E seremos as vítimas de nossa própria intolerância, nosso racismo, nosso machismo, nossa aversão às diferenças dos outros. É bom parar enquanto é tempo…se é que ainda é tempo.
Obs: A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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