Maria-Clara23

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Depois do horror… a contabilidade: este só olhou, não estuprou.  Aquele só gravou o vídeo, não estuprou.  O outro só jogou nas redes sociais, mas não estuprou.  Perversa contagem, como perverso é o fato em si.  Vários homens – um, dois, trinta e três – que importa o número? Violaram uma mulher, na verdade uma menina de 16 anos.  E o Brasil e o mundo olharam estarrecidos a banalização do horror, reduzido a cifras, números, quantidades.

Depois veio o machismo com suas retorcidas ilações. O delegado que interroga impertinente e violentamente a vítima, pergunta se ela tinha o hábito de fazer sexo coletivo. E depois, por whatsApp, declara enfaticamente estar convencido de que não houve estupro, que a vítima não estava dopada, que não foram 33 homens, porque aquilo é letra de um funk etc. etc. Um dos rapazes detidos e interrogados disse que ela “queria safadeza”. Saiu triunfante da delegacia, com os polegares para o alto, cantando vitória.

Foi um dos que só filmaram, só olharam, só divulgaram, só viram… Só foi cúmplice como tantos de nós ao olharmos essas barbaridades divulgadas na mídia e nas redes sociais e permanecemos silentes, ou omissos, ou coniventes.  Ou quando rimos de palavras de ordem machistas, sem criticar sua repugnante violência: “Mulher gosta de apanhar.” “Quando você bate numa mulher pode não saber por que está batendo, mas ela sabe por que está apanhando.”

Assim vai crescendo e se consolidando a cultura do estupro.  Quando um deputado diz a outra colega deputada que só não a estuprará porque ela não merece.  Ou quando um pré-candidato a prefeito é denunciado e conhecido como espancador e nada lhe acontece, sendo que até a esposa o perdoa e defende. São pequenos consentimentos ao mal e à agressão que parecem não ser tão significativos, mas cuja culminância pode e infelizmente deverá culminar no estupro coletivo da adolescente, cujo nome não foi divulgado.

A perversão vem de longe.  As sociedades primitivas eram matriarcais.  A mulher detinha a superioridade porque possuía o segredo da fonte da vida em seu corpo. Diante deste mistério, o homem temia e tremia. Até o dia em que descobriu que podia vencê-la pela força física.  E assim se estende até hoje o complexo de Brucutu, o homem das cavernas das histórias em quadrinhos, que portava permanentemente um tacape e arrastava sua mulher Ula pelo chão, puxando-a pelos cabelos.

Daí para todos os espasmos da violência que passa pelas sociedades tribais com a excisão dos clitóris das meninas, pelo matrimônio infantil onde crianças de oito anos são obrigadas a casar-se com homens de cinquenta, pelas tradições religiosas onde as viúvas devem enterrar-se junto com os maridos, é uma linha reta. O estupro coletivo da adolescente que poderia haver resultado em morte é apenas o ponto álgido desta linha.

Por baixo da ponta deste iceberg estão todos os outros estupros nossos de cada dia.  Na maneira desrespeitosa de olhar, de falar, de tratar. No encostar do corpo forçando um contato não desejado. Na necessidade permanente de humilhar, de menosprezar e diminuir. Na política salarial desigual e injusta.

A mulher vem lutando e obtendo algumas vitórias contra todos esses pequenos “estupros” cotidianos.  Conseguiu chegar ao espaço público, a postos de chefia, a salários mais ou menos competitivos.  Mas quando a questão é seu corpo desejado com instinto animal pelo homem, todo o caminho se esvanece.  E o que fica apenas é o triste espetáculo de seres humanos animalizados, brutalizados.  E um conflito onde perversamente se tenta culpar a vítima pelo crime indefensável do agressor.

Não importam as circunstâncias de vida da vítima.  A agressão sofrida a torna vítima sem discussões.  E o abuso e a agressão que sofreu é um mal em si mesmo.  Não se pode encontrar atenuantes alegando que ela provocou, ou desejou, ou instigou.  Pois então o crime deixa de ser crime quando é fruto de uma provocação?  Não, senhores, chamemos as coisas pelos seus nomes.  Uma mulher, uma menina foi violentada naquilo que tem de mais sagrado: seu corpo, sua forma de presença no mundo, sua identidade de mulher. Sua sexualidade criada para o amor e o gozo foi profanada ignobilmente.

Deixemos-lhe ao menos o direito de ser aquilo que é: uma vítima que sofreu abuso de estupro coletivo e pede justiça.  As duas mulheres que a defendem, uma advogada e uma delegada, vão lutar para que a justiça se faça.  Ambas devem saber bem o que é ser mulher em uma sociedade machista.

Obs:  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc) 

Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected]

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