(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Antes da mensagem deve haver a visão, antes do sermão, o hino, antes da prosa, o poema. Esta citação do poeta e pastor estadunidense Amos Wilder parece extremamente iluminadora para as dificuldades que a evangelização enfrenta.
Desde o início do Cristianismo assim aconteceu. A liturgia sempre precedeu a formulação e a elaboração das verdades da fé. O que foi rezado, louvado, cantado, expressado nas celebrações cúlticas das catacumbas dos primeiros séculos foi o material com o qual os padres da igreja puderam elaborar seus escritos e lançar as bases de uma dogmática que consiste até os dias de hoje no conteúdo da fé professada. A liturgia é a primeira instância da tradição, a que se segue imediatamente à escritura, ao mesmo tempo em que a precede.
O louvor, a celebração, o canto, os rituais não são acessórios na vida cristã, mas a fundação mesma da identidade desta. A liturgia e o rito revelam aquilo em que realmente a fé crê e professa, e visibiliza para o mundo a relação do ser humano com Deus e com o mundo. Como a Igreja louva, celebra e canta é ou deve ser um testemunho profético da verdade que professa. A estética, a beleza, a gratuidade atrai para a Beleza maior e infinita d’Aquele que é o centro da vida.
Portanto, retorna aqui a máxima Lex Orandi Lex Credendi, o “ leitmotiv” que significa que é a oração que leva à fé, ou melhor dito, é a liturgia que conduz à teologia. Este é um antigo princípio cristão que está no fundamento da elaboração dos primitivos “Credos” ou “Símbolos da fé”, e igualmente um antigo cânon da Escritura, que contém em muitas de suas passagens extratos litúrgicos.
Na Igreja Primitiva havia tradição litúrgica antes do credo e da doutrina. E estas tradições litúrgicas proveem o marco teológico para estabelecer os credos e o cânon. A frase latina (Lex orandi, lex credendi) algumas vezes expandiu-se tornando-se Lex orandi, lex credendi, lex vivendi, aprofundando aí as implicações desta verdade: a maneira pela qual celebramos reflete no que cremos e determina como vivemos.
Mas ao lado das celebrações e rituais propriamente religiosos existem outras possibilidades para a expressão da fé. Essas formas de expressão seguramente carregarão consigo novas linguagens. Em nosso caso, a da religião e da liturgia, certamente, mas também e não menos a da poesia, da arte, da literatura, da música e de todas as outras formas estéticas que a humanidade inventou em sua história de muitos milhares de anos.
Os desenhos e pinturas nas paredes das cavernas dos grupos humanos primitivos, os primeiros rabiscos, os fragmentos encontrados em diversos pontos do planeta dão testemunho desta primordialidade da imaginação e do sopro criador, que faz a humanidade caminhar em direção à sua vocação que, em termos bíblicos, é ser um sopro animado pelo espírito divino.
Uma das características do ser humano, uma das “constantes” que aparecem em sua identidade constitutiva é este dom de passar além do sensorial e aceder ao espiritual. Aqui entendemos por “espiritual” tudo aquilo que direta ou indiretamente se encontra conectado com o espírito, com aquela dimensão humana que passa além dos cinco sentidos. Está incluída aí a estética sob as suas diversas formas. E também a religião. O espírito informa e conforma a corporeidade.
Isso nos mostra que a maneira concreta de falar da Transcendência que nos desafia e nos habita, nos encanta e nos eleva, nos carrega a profundidades insuspeitadas e batiza nossos sentidos de maneira que, tocando o universo, possamos perceber que o segredo escondido nele e para além dele é um Mistério. Mistério este que desde a fé chamamos “Deus”.
Para falar deste mistério, há que passar pela linguagem conceitual, rigorosa e acadêmica, mas não necessariamente deter-se indefinidamente nela. Conceitos e enunciados são importantes e pertinentes, mas as tradições teológicas ocidentais e orientais, os místicos e profetas de todos os tempos nos dizem que há mais possibilidades, sempre abertas, de propor o discurso teológico. Ha maneiras de falar de Deus mais poéticas, evocativas, empatizantes, performativas, implicantes, esperançadas… que movem mais o leitor que a simples “passividade” assimilativa.
Assim sucede no Novo Testamento, por exemplo. As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de um autor e comentador. Ao serem analisadas, estão sujeitas à discussão sobre se a estética deve ser considerada independente do autor. Mas no caso de Jesus essa dissociação não procede. Suas parábolas são reflexo de seu mundo interior, de sua compreensão do reino. A obra de arte é a objetivação final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir à alma dos outros e essa intuição poética que estava na alma do poeta. “Assim acontece com Jesus, que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espírito Santo e transmite sua experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Sua sensibilidade, profunda ligação e compromisso com a experiência que faz ao lado de sua criatividade e observação da realidade o levam a compreender e transmitir o que considera como mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes para o sentido que comunica. E o que sai de sua boca é, em verdade, uma teopoética.
Para poder falar diretamente à mente e ao coração de nossos contemporâneos, importa não apenas recorrer a textos, canções, obras de arte explicitamente religiosas. Mas também e não menos lançar mão de autores e obras que não atuam no campo da teologia, e sim na arte, na literatura, no cinema, na imagem entendidos em seu sentido secular. Sua arte e poética têm em comum com a teologia a sede de sentido para a vida, a sede de justiça, liberdade, vida plena e a fé na humanidade.
Obs: A teóloga é autora de Teologia e literatura – Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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