Meditação sobre Ezequiel, Capítulo 37
[email protected]
domsebastiaoarmandogameleira.com
- O Texto do profeta, apesar de formulado em prosa, como se fosse narração, na verdade, é impressionante poema. Assim como o profeta foi arrebatado, o texto nos arrebata e nos transporta a um ponto do horizonte de nosso momento de agora no país, donde nos é dado contemplar imensa planície e daí constatar pessoalmente o “desastre”. Não pretendo acrescentar muitas palavras – que poderiam equivaler a “vãs repetições”, como nos alerta Jesus (cf. Mt 6, 7), vamos apenas reler coletivamente o texto e deixar que nos penetre até o mais íntimo do coração.
Os versos 1 e 2 são o primeiro movimento da peça. Imaginemos estar diante de uma orquestra a executar uma sinfonia que se desenvolve em ritmo intenso e denso. Leiamos os versículos 1 e 2:
“A mão do Senhor desceu sobre mim. Ele me arrebatou em espírito e me colocou no meio de uma planície que estava coberta de ossos. Ele fez-me circular em todos os sentidos em meio desses ossos numerosos que jaziam na superfície. Vi que estavam inteiramente secos”
O panorama é de abandono, a morte reina soberana, não há esperança, é o fim. Do centro da cena, inesperadamente, ouve-se uma voz grave que nos interpela sobre a confiança no futuro do povo, em relação ao qual nos sentimos tão pequenos(as) e frágeis, a saber quase nada. Leiamos o verso 3:
“ Disse-me o Senhor: Filho do homem, poderiam esses ossos retornar à vida? Senhor, YHWH, respondi, só Tu o sabes.”
A voz ordena com toda a sua autoridade divina, ordena-nos profetizar, anunciar futuro, sobre os ossos secos. Leiamos os versos 4-6:
“Ele disse-me, então: “Profere um oráculo sobre esses ossos. Ossos dessecados, dir-lhes-ás tu: Escutai a palavra do Senhor: Eis o que vos declara o Senhor YHWH: Vou fazer reentrar em vós o sopro da vida para vos fazer reviver; porei em vós músculos, farei vir carne sobre vós, cobrir-vos-ei de pele; depois farei entrar em vós o sopro da vida, a fim de que revivais; e saberei assim que EU SOU o Senhor”.
A palavra a ser dita tem de ter o poder da AÇÃO: no texto se trata de ação consciente,progressiva e paciente de recompor cada parte que vai cobrindo e envolvendo os ossos descarnados e ressequidos. É como a descrição de uma “práxis” (isto é, consciência e ação entrelaçadas), “práxis” de recriação, de restauração da vida.
Nós nos dispomos a obedecer à voz, leiamos os versos 7-8:
“Profetizei, pois, assim como tinha recebido ordem. No momento em que comecei, um barulho se fez ouvir, em seguida um ruído ensurdecedor, enquanto os ossos se vinham unir uns aos outros. Prestando atenção, vi que se formavam sobre eles músculos, que nascia neles carne e que uma pele os recobria. Todavia não tinham espírito”.
Na verdade, como o profeta, sentimo-nos em meio a barulho ensurdecedor, como de terrível confusão, mas percebemos que os ossos se unem uns aos outros, já começam penosamente a adquirir nova figura, a recuperar “carne”, já sugerem que, apesar da devastação e das dores, há futuro, mas “ainda não têm espírito”…
Por isso, o Senhor insiste: “Profetiza!”, profetiza!”. Leiamos o verso 9:
“Profetiza ao espírito, disse-me o Senhor, profetiza, filho do homem e dirige-te ao espírito: Eis o que diz o Senhor YHWH: vem, espírito, dos quatro cantos do céu, sopra sobre esses mortos para que revivam”.
É a ordem de fazer baixar o espírito, um sopro que vem dos quatro cantos do mundo, uma inspiração que já se acha espalhada por aí faz tempo… pensemos em profetas, profetisas e mártires de nosso tempo, pensemos em Martin Luther King a sonhar o sonho da igualdade que Rosa Park gerou em seu ventre quando se recusou a sentar-se no banco “reservado a pessoas negras”; pensemos em Helder Camara chamado a reunir as “minorias abraâmicas; em Oscar Romero clamando aos soldados a depor as armas que matavam seu próprio povo, pobres a matar pobres; pensemos no Forum Social Mundial anunciando “outro mundo possível”, necessário e urgente; façamos memória de Margarida Maria Alves com os miolos estourados pela fidelidade a seus irmãos e irmãs do campo; pensemos em Dorothy Stang com o sorriso suave e forte de quem crê que a vida vencerá a morte; reconheçamos com alegria o brotar de “Escolas de Fé e Política”, algumas delas já ecumênicas, olhemo-nos mutuamente nos olhos e digamos “presente” neste “10º Encontro de Fé e Política”; contemplemos os movimentos sociais espalhados pelos quatro cantos do mundo e um papa que, pela primeira vez, para além de exortar e aconselhar poderosos, se reúne pessoalmente com eles, a voz de mulheres e homens pobres do mundo, declara seus direitos de Terra, Teto e Trabalho e grita a seus ouvidos: “Não aceitem a opressão, organizem-se e rebelem-se contra ela!” Já há vento soprando sobre ossos secos, já há inspiração nos quatro cantos do mundo.
Obedecemos à ordem, leiamos o verso 10:
“Proferi o oráculo que Ele me havia ditado, e daí a pouco o espírito penetrou neles. Retornando à vida, eles se levantaram sobre seus pés: um grande, imenso exército”.
O espírito os penetrou, trazendo a animação da vida e eis que surgem como “grande, imenso exército”. Nós, nosso povo, a terra ultrajada, ossos descarnados pelos quatro cantos do mundo… parecendo recobertos de carne, de pele, mas ainda sem espírito, sem a inspiração capaz de levantar “imenso exército”. O espírito tem de penetrar em nossos ossos, em nosso povo derrubado nesta planície de uma história de engano, violência e morte, uma história de 500 anos. O espírito tem de “penetrar”, chegar até dentro de nossos ossos: como esperança que não se abate (digamos em coro: esperança que não se abate); como lucidez que continue a nos fazer enxergar para além das sombrias tramas dos poderes opressores deste mundo, como palavra que seja consciência e ação, práxis política de recriação (digamos em coro: lucidez que nos faz enxergar); como coerência de nossa responsabilidade ética, com a clarividência permanente de que em nossos atos estamos sempre a responder às outras pessoas e ao mundo (digamos em coro: coerência de nossa responsabilidade ética). Antes, dependíamos em tudo da Natureza, hoje é a Natureza que depende de nós, a terra nos grita por socorro. Abrir a torneira para lavar as mãos ou tomar banho ou cozinhar ou lavar os pratos e tantos outros pequenos atos do dia a dia já não são mais atos “naturais”, neutros, não, são atos éticos, de responsabilidade diante de nossos irmãos e irmãs em humanidade e diante da terra ferida e devastada… são atos de responsabilidade ética porque estão diante de nós, sim, bem ali adiante, pessoas e povos inteiros que padecem escassez de bens primários… tomar água ou café e jogar a garrafinha ou o copinho, sujar o chão de lixo; decidir o que comer (nossa ecologia interior a cada dia, a manutenção de nosso corpo, “templo do Espírito Santo”); o que comprar e consumir, em que aplicar as forças; como usar o automóvel; como distinguir principal e secundário… Nossa casa (privacidade) e o mundo (espaço público) estão cada vez mais entrelaçados, ética e política se exigem uma a outra. Nunca como hoje a Natureza dependeu tanto de nós, nosso povo depende de nós, os povos dependem de nós, de nossa esperança, de nossa lucidez, de nossa coerência entre dizer e fazer, a começar de nossos pequenos atos do quotidiano, a partir de nossas pessoas e de nossas casas: esperança, lucidez e coerência são exigências de nossa espiritualidade.
Deus nos conceda força e fortaleza, esperança, lucidez e coerência! Deus nos levante do chão como “grande e imenso exército” (digamos em coro: “grande e imenso exército”). Amém.
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB
Imagem enviada pelo autor.