Eu acompanhei a sua trajetória de líder, no comando do bando, carregado de iniciativa, a indicar o caminho a tomar. Era obedecido por todos que, em fila indiana, o seguiam, e, ele, garboso, como se fosse soldado da infantaria, era quem seguia a frente dos demais, apesar do pé torto, a conferir a seus passos um ritmo diferente. Todos, sempre juntos, paravam quando ele parava, religiosamente obedientes, atentos ao seu sinal. A liderança durou algum tempo, embora não possa especificá-lo com precisão.
O certo é que, um dia, passei a ver o bando trilhando um passo, e, ele, já decaído da posição de líder, a poucos metros atrás, seguindo os antigos comandados, ora mais próximo, ora mais distante, mas sempre na mesma direção. A queda do líder me deixou uma interrogação. E o motivo? Só depois de algum tempo, consegui chegar a uma explicação lógica: a perda de um olho, passando a ver apenas com um, o que, em nível de ganso – estou me referindo a ganso, portanto, – é vital, porque, em algumas ocasiões futuras, observei que, quando ele, líder deposto, se aproximava do bando, por não ver de um olho, se batia nos outros, nenhum o perdoava pelos empurrões recebidos, passando a lhe beliscar ferozmente. Daí a sua queda na condição de líder, pela meia visão perdida, o que me lembrou, de longe, Esparta, quando os nascidos com defeito físico eram jogados num despenhadeiro, por se tornarem inadequados a vida que a comunidade levava. Assim também no meio daqueles gansos.
Uma pausa se faz para registrar o caráter selvagem dos gansos, retratado no momento em que, por exemplo, se enfileiram em frente da casa para receber pedaços de pão. Uns beliscam os que são mais rápidos. Não todos, evidentemente, mas alguns, que eu, que, de quando em quando, também faço a distribuição, fico a constatar. Daí a explicação para o fato de o ex-líder ter se afastado de seus antigos liderados, pela deficiência da visão, fato que, por certo, o fez perder a liderança. Dois motivos, portanto, para justificar a condição de excluído imposta pelo bando.
Para um especialista em ganso, tudo isso soa como notícia rotineira. Mas, eu sou um mero curioso, – nem a veste aprendiz ouso usar – de forma que me espantei, e me espanto diariamente, quando, no ambiente dos gansos, muita área para todos percorrerem, em busca de água e de alimento, vejo o velho líder atrás do bando, a soltar sons, como se estivesse a chamar os antigos comandados, sem que nenhum deles se sinta na obrigação de responde-lo, até por compaixão, o que não lhe retira a persistência de continuar acompanhando o bando, ele que antes indicava as direções a serem tomadas, agora se vendo na contingência de seguir, sempre a distância, um verdadeiro rejeitado em seu próprio terreiro, eternamente solitário em suas andanças. Acho, no fundo, que aqueles gansos herdaram, neste ponto, alguma coisa nossa, dos humanos.
Obs: Publicado no Diario de Pernambuco.
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.