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Nunca é demais meditar sobre Missão, sobre o compromisso da Igreja com o mundo. Nossa identidade se define na trilha de uma palavra que está sempre a nossos ouvidos: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Filho unigênito… É que Deus enviou o Filho ao mundo, não para julgar e sim para salvar o mundo” (Jo 3, 16-17). E é curioso como nunca o aprendemos suficientemente, necessitamos de voltar sempre de novo a perguntar-nos: quem somos, qual a nossa missão, qual o nosso compromisso… È que este mistério nos foi “conferido por misericórdia”. E “um tal tesouro nós o trazemos em vasos de barro, para que apareça claramente que esse extraordinário poder provém de Deus e não de nós” (cf. 2 Cor 4,1-7)
- Fé e Religião
O Cristianismo é, em considerável proporção, um fenômeno religioso. É inegável que a Igreja cristã tem toda a aparência de uma religião particular. E, no entanto, uma das maiores dificuldades da Igreja é como lidar com a religião.
Primeiro, porque Deus, o mistério transcendente, é o fundamento último da Igreja. Ora, a religião é justamente a busca de Deus e a tentativa de dramatizar, expressar simbolicamente, nosso relacionamento com o Mistério mais profundo da existência.
Em segundo lugar, a religião tem sido um fato cultural universal. Os povos, com os quais a Igreja tem-se encontrado e realizado o processo de evangelização, são povos religiosos: judeus, orientais, gregos, romanos, anglossaxões, germânicos, aborígenes, africanos, asiáticos… A cultura desses povos tem sido fortemente marcada pela expressão religiosa: mitos, rituais, doutrinas, instituições sacerdotais e de organização… Tão religiosos que o jeito cristão de ser, à primeira vista, pareceu-lhes “ateu”, assim se dizia em Roma. E o Apóstolo São Paulo, em Atenas, se surpreende com a “extraordinária religiosidade” e o comportamento marcadamente devoto dos gentios (cf. At 17,22). O encontro com os povos germânicos explica muito dos excessos devocionais da Igreja medieval…
Em terceiro lugar, essa universalidade da religião como fato cultural revela ser a religião dimensão bem mais profunda que simples expressão cultural. É, na verdade, uma constante antropológica, presente até mesmo no fenômeno do ateísmo. Nenhuma sociedade lhe escapa. Há sempre necessidade de legitimar-se mediante a elaboração de um arcabouço cultural: princípios, valores e normas. E todo edifício cultural se enfaixa e acha sua última segurança em algum princípio inquestionável, evidente por si mesmo, absoluto. O que equivale a dizer quea ponta suprema da cultura é sempre a legitimação religiosa. Que se pronuncie o nome de Deus ou não, o que importa é que há sempre um princípio ou valor supremo que sustenta a totalidade e dá sentido final a todo o conjunto de valores pelos quais as pessoas e os grupos empenham suas vidas, seja a pátria, a segurança nacional, o partido, a revolução, o dinheiro, o consumo, o próprio prestígio, a fama, líderes dominadores, alguma pessoa à qual nos devotamos… Há sempre um valor supremo, um “éschaton” (valor final, último), que pode dar-nos as razões de vida e de morte, exigir nossa imolação em sacrifício. Daí, a questão propriamente teológica não ser a da existência de Deus, mas a do discernimento entre Deus e osídolos, entre Emanuel (Deus conosco) e Molok (deus que se alimenta de sacrifícios humanos)…
Da constância e da profundidade da dimensão religiosa na vida humana decorrem chance e, simultaneamente, dificuldade para a Igreja.
Chance, porque é justamente aí, na busca incessante do absoluto que se acha a porta de entrada para o processo de evangelização. “A graça supõe a natureza”, por mais decaída que se encontre. A proclamação do Evangelho supõe que a humanidade seja estruturalmente aberta a sua mensagem, esteja, em última análise, em busca dela. Para a Teologia Fundamental, a pessoa humana está ontologicamente estruturada a ser “ouvinte da Palavra”, como enfatizava belamente o grande teólogo Carlos Rahner. Teilhard de Chardin falava do “fenômeno humano” como “desejo de Cristo”, inspirado particularmente pela esplêndida meditação a das epístolas aos Colossenses e aos Efésios. Assim, a sensibilidade religiosa é, de algum modo, preparação para o “initium fidei” (começo do processo da fé), embora esta seja em si mesma obra da graça de Deus.
Mas a chance pode converter-se, ou perverter-se, em dificuldade. Com efeito a tentação que a Igreja tem de enfrentar constantemente é a de pensar-se e sentir-se mera encarnação da busca religiosa humana. Em outras palavras, reduzir-se a religião, uma religião determinada ao lado de tantas outras. Mais um sistema de mitos, rituais, doutrinas e instituições organizacionais que delimitam o “território” do sagrado.
É verdade que, em seu diálogo com as pessoas concretas, os grupos e os povos, a Igreja vai assumindo a expressão religiosa, e até elabora e produz cultura religiosa. Pois trata-se de dimensão inerente à realidade humana, com essa se tem de contar e a fé tem de dialogar. Mas, se se reduz a isso e se comporta como uma religião, então não ultrapassa o plano da relatividade cultural, inscreve-se apenas no nível das perguntas humanas e não no da resposta divina. É só busca de Deus, não passa de “obra”, com toda a ambigüidade que carrega qualquer “obra de mãos humanas”. Degrada-se a mero sistema de legitimação ideológica das relações e das estruturas de determinada sociedade.
Ora, o específico da Igreja é dar testemunho da graça, dar testemunho de que é Deus mesmo que se aproxima da humanidade, com ela se comunica e a salva, assumindo-a no interior de seu próprio dinamismo de amor trinitário. Mais que busca humana de Deus (religião), a Igreja está chamada a testemunhar o evento da Palavra de Deus, como irrupção de raio fulgurante em plena treva. O livro deuterocanônico da Sabedoria di-lo de forma intensamente poética:
“Enquanto denso silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava rápida ao meio de seu curso, do alto dos céus, tua Palavra todo-poderosa irrompia do trono real, atirava-se como guerreiro impiedoso em meio à terra condenada ao extermínio” (Sb 18,14).
Ora, a Palavra de Deus é radical interpelação à totalidade da vida humana. Para as Escrituras, o mundo é obra de Deus e está debaixo de Sua soberania. Toda obra humana tem de ser submetida ao julgamento da Palavra (cf. Jo 3, 19-21). E a obra humana é a construção da história, a começar do relacionamento elementar com a Natureza para garantir a sobrevivência e organizar as coisas em função de nosso bem estar e interesses. A relação com a Natureza já é o primeiro passo no diálogo entre Deus nós, como nos diz de forma tão expressivamente plástica o livro de Gênesis em seus dois primeiros capítulos. Ora, relação com a Natureza para garantir a sobrevivência e organizar o mundo com nossas mãos não é outra coisa, senão o processo de produção, distribuição e consumo, ou seja, relações e estruturas ecológico-econômicas. E sabemos muito bem como o trabalho (relações materiais, econômicas) é decisivo como mediação de nossas relações sociais, de nossas relações de poder (política) e dos processos culturais. A partir do trabalho – que Marx gostava de chamar de relações sociais de produção – vai-se articulando, não mecanicamente, e sim dialeticamente, uma totalidade – o sistema sociopoliticocultural – que vai estruturando historicamente nossas pessoas e as coletividades. E é sobre essa totalidade histórica que incide continuamente o julgamento daPalavra de Deus. Esta não se restringe ao que se estabelece como sagrado, mas julga a vida humana em todas as suas dimensões. É o que transparece claramente do testemunho global das Escrituras, ao exporem constantemente o curso concreto da história do povo hebreu ao juízo de seu Deus. De outro modo, jamais poderíamos entender a perspectiva da chamada Obra Deuteronomista, que vai de Josué ao 2° Reis, e toda a corrente profética e apocalíptica.
Frequentemente se ouve falar – até no discurso de lideranças eclesiais – de que a missão da Igreja é “religiosa”, ou seja, diz respeito ao sagrado, é preparar as pessoas para abordar o sagrado e, quase diria, para morrer bem… Ora, o sagrado é sempre elaboração cultural, contrapondo-se àquilo que determinada coletividade delimita como “profano”. Ou então se diz que a missão da Igreja é “espiritual”. É muito frequente que a ação da Igreja “no mundo” se limite ao plano das relações interpessoais ou a ações sociais de assistência a vítimas do sistema de opressão, sem por em causa as raízes da injustiça.
Creio que não podemos hesitar em denunciar o “espiritualismo” como perversão do Cristianismo. Uma perversão que parece brotar de duas fontes. Uma, é a constante antropológica da tendência a fugir do compromisso e do risco histórico: refugiar-se e consolar-se no “sagrado”, para eximir-se da responsabilidade de assumir a transformação do mundo “profano” como a mais forte interpelação que se nos faz ao espírito. É diante disso que se testa realmente “de que espírito somos”.
Graciliano Ramos tem, em suas “Memórias do Cárcere” uma passagem muito expressiva e que denuncia amargamente essa fuga justificada pelo “espiritual”:
“Se eu fosse um homem do primado do espiritual, estaria agora gordo, cuidando do meu corpo. Mas nós, pobres materialistas, estamos aqui, escondidos feito ratos, nesses quartos de pensão, à base de pão e laranja, quase reduzidos a puros espíritos”…
Quando Jesus nos fala de “fazer a obra de Deus”, evidentemente se refere à restauração da criação, como se vê facilmente em Jo 5 e Jo 9. O mundo, em sua materialidade, é a obra de Deus e tem de ser resgatado para que assim brilhe a glória de Sua sabedoria. Se desesperamos disso e nos refugiamos nas “almas”, estamos cinicamente e covardemente entregando a Criação ao poder das trevas. Estamos confessando que Satanás (“adversário”) é o mais forte. Por isso, à luz das Escrituras, longe de ser sublime expressão do Cristianismo, o “espiritualismo” não passa de idolatria, desespero diante da aparente impotência da Cruz de Cristo (cf. 1Cor 1-4).
Essa tentativa constante de fugir ao compromisso formulou-se, na filosofia e na cultura ocidentais, no clássico dualismo helênico espírito versus matéria – aqui a outra fonte da perversão. Estamos intelectual, e sobretudo afetivamente, imaginativamente, formados(as) pela idéia de que a matéria é inferior, desprezível e má. Importa o espírito, a idéia, o pensamento, o discurso. Estamos mais preocupados(as) com os conceitos das coisas que com as próprias coisas O trabalho, por isso, é coisa de escravo, é neg-ócio, negação do ócio, este, condição própria de seres humanos superiores, chamados, não a trabalhar a matéria do mundo, mas a contemplá-la para se distanciarem dela sempre mais, arrancando-lhe a idéia que aí jaz prisioneira. O “espiritualismo” é, assim, intelectualista. Sem a herança helênica não se explicaria o racionalismo iluminista. Ora, a razão é abstrata, o que existe historicamente são as razões de cada um(a). O culto à razão, na verdade, é a grande legitimação cultural para justificar a divisão humana entre “intelectuais” (pessoas que decidem) e “escravos (pessoas que trabalham), e fundamentar o autoritarismo nas relações humanas e o imperialismo político, pois os tais “valores humanos” descobertos pela luz da Razão não são outra coisa que as razões dos poderosos impostas pela força nada racional a quem não tem chance de resistir-lhes. A tão proclamada “força da razão” frequentemente não passa de “razão da força”. Pensemos em nosso sistema brasileiro, tão autoritário e elitista, e pensemos nas guerras ao largo do mundo inteiro. O “espiritualismo”, que pode parecer a muitos(as) algo tão sublime, leva, na verdade, ao racionalismo individualista e ao imperialismo. Não é isto que está na base do drama dos povos colonizados e particularmente de nossa Afroameríndia?
Não podemos esquecer que os vínculos se estabelecem entre as pessoas mediante a materialidade. É o CORPO nossa possibilidade de expressão e de comunicação. Sem corpo não há relações, sem vínculos materiais não há coletividade, não há história. Falando teologicamente, não há história de salvação. Não há fé cristã, pois esta se radica na história e na historicidade. “O Verbo se fez carne”, assumiu a historicidade, com suas fragilidades e incertezas. Mesmo o que há de mais espiritual em nós elabora-se, expressa-se e comunica-se a partir de nossas raízes materiais e através do corpo. O amor tem de passar sempre pelo corpo, por nossas relações de produção e chama-se “partilha dos bens”, “koinonía”; e por nossasrelações eróticas, sensuais, de reprodução, e é processo do Amor, de éros até agapé, que não são polos opostos, mas intimamente relacionados. Romper com a materialidade da vida equivale a negar a história e romper os vínculos que concretamente ligam as pessoas e as constituem enquanto pessoas, isto é, como seres de relação. Isto equivale a dizer que, paradoxalmente, as pessoas se constituem em seu núcleo espiritual mais profundo – sua identidade de pessoas – mediante os vínculos materiais da existência histórica. É por isso que o verdadeiro nome do “espiritualismo” é individualismo. Na cultura ocidental, reivindicar para a Igreja exclusivamente a chamada tarefa “espiritual”, por sinal reivindicação tão a gosto dos poderosos, é apenas eufemismo para camuflar o secreto propósito de confinar a obra da Igreja ao cuidado com os indivíduos isolados, sem interferir na dimensão coletiva da vida humana, na sociedade, em suas relações e estruturas, pois a dimensão coletiva se faz por vínculos materiais. E isso é idolatria, assim lhe chama a Bíblia, pois é retirar de sob a soberania da Palavra as relações concretas da vida. Aliás, para o Cristianismo o vocábulo “indivíduo” não existe. O que existe é a pessoa (termo que expressa um conceito cristão original elaborado quando das controvérsias trinitárias e cristológicas), a pessoa, ser de relações, cuja dimensão profunda, “espiritual”, se estrutura e se expressa mediante vínculos corporais. Em última análise, o que o Cristianismo chama de “espírito” não é outra coisa senão o mundo materialque, na pessoa humana, chega à consciência de si e é capaz de amar (dialogar) e projetar o futuro, e sente-se chamado a entrar em diálogo com o Mistério transcendente que, graciosamente, irrompe qual fonte secreta (Cf. Mt 6, 5-8) do coração da vida e é potenciado pela energia vivificante do Espírito (cf. Gl 4,6; Rm 8) que “enche o orbe da terra” (Sb 1,7).
É a este mundo, com todas as suas relações concretas, que a Igreja está mandada anunciar a Palavra. É a ele que tem de proclamar universalmente o julgamento da Palavra e as Boas Novas de Deus, “iluminando toda pessoa que vem a este mundo” (Jo 1, 9). É verdade que o Cristianismo é também uma religião entre tantas, mas sua raiz o projeta muito para além de sua face religiosa. Por isso, seria degradação reduzir sua mensagem e sua missão simplesmente ao “religioso”, disputando o mercado dos bens sagrados e confinado ao âmbito de determinada cultura. A Igreja está para além da religião, carrega, “em vasos de barro” (2Cor 4, 7), é certo, uma Palavra, cuja função é interpelar radicalmente – desde a raiz – a vida humana, toda vida humana (todos os seres humanos) e toda a vida humana (todas as dimensões da vida) a partir da santidade de Deus, perguntando, sempre e cada vez de novo, pelo Amor (Cf. Mt 25, 31-46; 1Jo 3,11ss).
2. A tarefa da Igreja: encarnar historicamente a vocação de Deus
Impressiona-me a maneira como a Bíblia fala de Deus. Nas antigas tradições de Gênesis, é o Deus dos Pais, comprometido com Abraão, Isaac e Jacó, a ponto de ser invocado como Parente de Jacó. Disso Jesus vai tirar o que considera o argumento decisivo a favor da ressurreição, em sua discussão com o grupo dos saduceus: se Deus se comprometeu com eles, é sinal de que estão vivos, pois Deus não é Deus de mortos, mas de vivos (Cf. Mc 12, 18-27). O Deus bíblico é o Deus comprometido com as vicissitudes humanas dos clãs patriarcais.
É particularmente importante no conjunto das Escrituras o texto de Ex 3, que nos fala da vocação de Moisés. Chama a atenção que o título de identidade seja justamente “Eu sou o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó”. E o que é que move Deus a agir? “O clamor dos israelitas chegou até mim”… “Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi os gritos de aflição diante dos opressores… e desci para libertá-los”. É a visão das necessidades do povo e seus clamores que, como nos dizem, pateticamente, os Salmos, despertam a Deus, chamam-no à ação. É o povo que dá a Deus a vocação, pois é sua realidade viva que o invoca como poder de salvação, já que entrou em gratuita aliança com os Pais.
Moisés é enviado ao Faraó como encarnação histórica da descida de Deus. E a isso está ligada a revelação de Seu próprio Nome. O Deus libertador é inefável, Seu nome é impronunciável e incognoscível. Ele “habita uma luz inaccessível” e “jamais ninguém o viu”. A única maneira de saber quem é, é experimentar Sua presença como energia salvífica em meio à história humana, pela restauração do que está quebrado. YHWH é “Eu sou”, isto é, “Eu estou presente”, “Eu estou aí”. Isaias o compreendeu muito bem quando lhe chama “Emanuel” e repete continuamente “quando tal e tal coisa acontecerem vocês conhecerão que Eu sou, que Eu estou aí!”. Na mesma linha fala Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” ( Jo 14,9). A missão do Filho é encarnar historicamente a vocação de Deus: restaurar Sua obra. É assim que Isaias interpreta sua vocação, no cap. 6°: “Quem irá por nós?” é a permanente pergunta de Deus. “Eis-me aqui, envia-me a mim”, responde o profeta. São Paulo considera os apóstolos embaixadores plenipotenciários para exercitar a obra da reconciliação, com a consciência de que é “Deus mesmo reconciliando o mundo consigo” (Cf. 2Cor 5, 18-21).
É este o sentido mais profundo e inaudito de toda vocação na Bíblia: dar forma histórica à intervenção de Deus, tornar possível a obra de libertação. De Josué a Jesus é sempre o mesmo mistério presente: o nome de ambos deriva do próprio nome de Deus, YHWH, “o Senhor está salvando”. É essa a meditação que a Bíblia nos oferece ao apresentar-nos os grandes modelos: Juízes e Profetas, como Gedeão, Sansão, Samuel e o Servo de Deus anunciado por Isaías; o novo Davi que estabelecerá o governo de Deus a partir do poder popular, com “o país nas mãos de um povo humilde e pobre” cf .Is 11, 1-9; Sf 2, 3; 3, 12-13; Jr 23, 1-8; Ez 34); ; mulheres como Miriam, Débora, Ana, Judite, Ester, Maria…
Toda a obra de Jesus, segundo os Evangelhos, não é outra coisa senão encarnar historicamente a vocação de Deus que desce para restaurar seu povo, obra de Suas mãos, como nos diz tão bonito o profeta do exílio no livro de Isaías (cf. Is 40-55). “Se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, é sinal claro de que o Reino de Deus chegou até vós” (Mt 12, 18), e o forte ocupante da casa está definitivamente amarrado (cf. Mc 3,27). Que são os sinais operados por Jesus, as “energias” como diz Marcos, a não ser isso? Sinais de cura corporal, de abertura de olhos para nova lucidez e nova coragem (cf. Jo 9), sinais de levantamento de encurvados, de dignificação de pobres e marginalizados, de crianças e de mulheres, de publicanos e de prostitutas…
É interessante verificar como o evangelista Marcos trata o tema escatológico da vinda definitiva de Deus. Nos inícios da comunidade cristã, o Judaísmo, em profunda crise de identidade e de sobrevivência, está intensamente polarizado pela perspectiva e pela linguagem apocalípticas. Já na profecia de Malaquias, que deve ser do 5º século a.C., esse traço se insinua. Os olhos do povo se voltam para o futuro distante, aquele instante mítico em que tudo se transformaria pela descida de Deus em pessoa, precedida pelo retorno do grande profeta Elias. O que faz Marcos? Retoma as imagens de Malaquias e tem a coragem profética de apontar para a história. O retorno do mensageiro final tem de ser visto na ação profética de João Batista, e a vinda definitiva de Deus tem de ser contemplada na caminhada histórica de Jesus de Nazaré. O fim está no “meio” de nós, o Definitivo se revela no provisório. Encanar-se nas tarefas históricas e aí dentro produzir sinais que revelem a presença do Reino, eis a missão da Igreja: “Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a Boa Nova” (Lc 7,22). São os sinais da eficácia divina, vitória da soberania de Deus.
3. A Igreja, testemunha da universalização da Promessa
Para muitas pessoas da Igreja, a passagem que se dá do AT ao NT é o processo de progressiva “espiritualização”. Já houve até exegetas para defender essa ideia. Ora, essa não é de modo nenhum a indicação que temos das Escrituras.
No AT Deus se revela interessado em constituir um povo, afirmando Sua santidade e soberania na totalidade de sua existência histórica, desde a economia até a religião, passando pelas relações sociais e pelas relações políticas. Do contrário, não se explica a tão grande importância dada pela Bíblia a narrar as histórias dos reis, nem se pode explicar a impressionantemente forte oposição profética à monarquia e ao Estado, que chega a produzir uma das críticas mais veementes ao poder político e religioso. A denúncia da exploração, da opressão e da alienação, antes de ser de Marx, é da profecia bíblica. E, quem sabe, passou a Marx em seu sangue hebreu… Basta conferir Jz 9, 7-15, a fábula das árvores que elegem o espinheiro para rei, e inumeráveis oráculos da profecia clássica, entre o século XI e o século VI a.C. Oséias declara que a monarquia, de início ao fim, é o arco da ira de Deus. (cf. Os 13, 11). Na Bíblia estão, talvez, os textos mais críticos ao poder, de toda a literatura universal. Por isso, o tribalismo, mais que simples sistema social ligado às circunstâncias de uma determinada época, foi-se tornando na Bíblia paradigma teológico para proclamar o propósito de Deus: um povo solidário, liberto de todo tipo de servidão (cf. Jz 8, 23). É o que indica claramente Jesus, ao constituir a comunidade sob a liderança simbólica de doze novos patriarcas (cf. Mc 3, 13-19) e de mães marcadas pelo sinal de doze, a hemorroíssa e a filha de Jairo (cf. Mc 5, 25.42). E é por isso que a Nova Cidade tem de estar edificada sobre doze colunas (Cf. Ap. 21,12ss). Os Doze lideram uma comunidade de iguais, conforme o ideal de Deuteronômio: não haver necessitados e excluídos em seu meio (cf. At 2, 42-47; 4, 32-37; Dt 15, 4).
Pois bem, o Deus do AT se revela como a energia divina (Espírito) presente na História (YHWH) e comprometida com a construção de um povo livre e solidário (Cf. Dt 5,6; Dt 6, 20-25). Na terminologia de hoje diríamos: o compromisso do Deus bíblico não é com o Estado e suas estruturas de poder, nem com o templo e sua mecânica religiosa de manipulação do sagrado, mas com a Sociedade do povo e suas relações de solidariedade, hoje diríamos, com asociedade civil.. É nessa experiência da comunhão e do diálogo humano que a Escritura vê a porta de entrada no diálogo com o Mistério de Deus. É nessa firme convicção que se baseia a incisiva crítica de Jeremias ao sistema religioso do templo, no cap. 7°, que se tornou clássica como modelo de toda religião degradada a legitimação cultural (alienação) do sistema de opressão.
Quando o AT fala de Promessa está falando disso. Deus empenha Sua santidade e fidelidade no cumprimento dessa obra. É absolutamente certo que Sua Palavra se cumprirá, o “xalôm”, a plena felicidade não é apenas um sonho humano, pois está garantido pelas próprias possibilidades de Deus.
O NT não é a “espiritualização” dessa Promessa. O que Deus continua a prometer-nos é o “xalôm”, a restauração plena, a edificação de um povo que coma e beba do que planta, que habite nas casas que constrói, que tenha olhos enxutos de lágrimas, e cuja vida seja vitoriosa a ponto de incluir o próprio levantamento de seus mortos (cf. Is 65, 17-25; Dn 12; Ap 21). O que Deus continua a prometer é que a criação está feita para durar sempre e Sua fidelidade está aí empenhada em garantir a vitória da vida (Cf. Sb 1,13-15; 11,26).
Se não fosse assim, não teria sentido Lucas iniciar o evangelho dizendo-nos que a proclamação da Boa Nova é contradição mortal com os poderosos do império e do templo e é para eles, ricos e poderosos, terrível maldição (Cf. 3, 1-20; 6, 24-26). E não teria dito que o conteúdo da Boa Nova é apelo à mudança radical de relações, a começar do econômico: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver de que comer, faça o mesmo!” (Lc 3,11). E por que começar o NT com o cântico de Maria, cântico tão tipicamente vetero-testamentário? A filha de Sião canta o evento do Messias contemplando nele a inabalável fidelidade do Deus “que mostra o poder de seu braço, dispersa os orgulhosos com seus projetos, derruba poderosos de seus tronos e levanta os humildes, sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 2, 51-53), e, assim, cumpre as antigas promessas feitas a Abraão e a sua posteridade. E como entender que o NT se conclua com o Apocalipse, texto de linguagem tão estranhamente antiga, releitura de Êxodo, dos Profetas e particularmente de Daniel?
E qual a novidade do NT? Se Jesus é Filho de Deus, n’Ele “todas as promessas encontraram o seu SIM” ( 2Cor 1, 20), n’Ele todas as promessas se firmam, como realizáveis para todos os povos, pois Abraão é “pai da multidão dos povos” (cf. Rm 4, 13-17) e Deus Pai de Jesus é o único Deus criador de toda a humanidade. A novidade não reside nalguma “espiritualização” da Promessa. Isso seria idolatria, pois retiraria de debaixo do poder de Deus todas as esferas da existência humana que porventura não coubessem nesse rótulo. E o mais triste é que para certas categorias na Igreja seja assim… A novidade está, isto sim, na universalização da Promessa. Por isso, o NT não é nova Escritura, que viesse substituir a antiga, mas releitura das antigas palavras à luz do novo horizonte rasgado pelo evento de Cristo (Cf. 2Cor 3). Quando os Apóstolos falam das Escrituras, estão-se referindo ao Primeiro Testamento. E esse continua a ser a Bíblia da Igreja cristã. É instrutivo observar como em Me 12, 38-40 Jesus faz o mesmo que Amós havia feito em seu tempo (cf. Am 2, 6-16): analisa o sistema da sociedade e revela perceber como é um todo articulado, desde a economia até a religião.
É a partir da universalização da Promessa que Paulo elabora sua eclesiologia. Para ele, nisto consiste o grande mistério revelado a sua geração e mediante, sobretudo, o seu próprioministério: os povos gentios são admitidos de pleno direito a participar da herança de Abraão. E isso não exige submeter-se à cultura judaica. Não exige adotar nem a religião, nem as práticas do Judaísmo. A única coisa que se exige é a fé na Boa Nova de que Deus em Jesus reconcilia o mundo consigo, mediante a loucura da cruz (cf, 1Cor 1-2). E essa fé é poderosa para transformar a vida, tanto pessoal, quanto coletiva. Por ela todos os povos têm acesso direto ao trono da graça. Os gentios podem preservar sua própria identidade cultural. O propósito de Deus é tornar todos os povos Povo de Deus. É esse o processo da salvação que o Espírito está fermentando no universo.
Conforme a epístola aos Efésios – um dos documentos mais importantes para a eclesiologia do NT – já não há mais muro de separação, todos os povos têm a chance – que lhes é dada por graça – de se aproximar e de conviver como um único povo de Deus. E, para a epístola, um sinal claro de participação humana na redenção de Cristo, de salvação, é o encerramento daguerra e o estabelecimento da paz entre os povos. A mesma visão da salvação que já tem a profecia antiga e se expressa de maneira clássica em Isaías, cap. 2º: o “xalôm” internacional e definitivo, todos os povos subindo o monte de Deus e transformando suas armas de guerra em instrumentos de produção…
Para o Apóstolo São Paulo a Igreja é a “ekklesía”, isto é, não uma nova fundação, mas a continuidade do Israel de Deus, o povo de Deus congregado, a “qahal YHWH”, a assembléia de Deus. Dessa “assembléia”, tanto Jesus como ele mesmo se sentia membro. Há porém agora uma novidade: a “Qahal YHWH” rompe qualquer fronteira humana. Todos os povos estão chamados a serem Povo de Deus, revela-se, de maneira clara e definitiva, que não há “eleição” como privilégio de ninguém. O sinal de pertença já não é a circuncisão na carne, mas no coração, e a Lei é a que está inscrita na consciência (Cf. Rm 2, 15.25-29). Qualquer eleição particular só se justifica como escolha vocacional para ministério, serviço à escolha gratuita e universal coextensiva à própria criação. Este o sentido mais profundo do hino que abre a epístola aos Efésios. É bom notar que a nova assembléia, continuadora da antiga, é tida pelo Apóstolo como alternativa à assembléia das cidades grecorromanas da época. Nestas decidiam os homens (machos) considerados “homens de bem”, isto é, de bens (aristocracia). Na “Igreja” (“ekklesía”, assembléia) podiam estar todos e todas, sem distinção: senhores e escravos(as), homens e mulheres, pessoas adultas e crianças, judeus e gentios, conacionais e estrangeiros. Instauravam-se aí as primícias de um nova sociedade internacional, fundada na igualdade, na justiça e na paz (cf. Rm 1-2).
Assim, a Igreja não é uma simples associação religiosa ao lado de tantas outras, preocupada com as tarefas que dizem respeito ao sagrado, nem é uma determinada cultura religiosa, sempre ideologia. A Igreja são comunidades semeadas em toda parte – esta é a estratégia missionária de Paulo – imensa rede de comunidades, cuja missão é testemunhar e, ao mesmo tempo, fermentar esse processo universal de transformação da totalidade da vida dos povos da condição antiga de “não povo” em Povo de Deus. Mais que uma nítida organização ou instituição com contornos e fronteiras bem determinadas, a Igreja é um processo permanente de fermentar novas relações no interior dos povos e entre os povos, desde a economia até a cultura. O sacramento central, a Eucaristia, é bem eloqüente: sentimos a presença eficaz e comunicativa de Jesus, Filho de Deus, no gesto comunitário da partilha do pão e do vinho, gesto de celebração e de profecia do que deve ser a convivência humana (Cf. Lc 24, 28-32). E dizemos que isto é milagre, é sobrenatural, é graça: porque realizar o amor só é possível em Deus (Cf. 1Jo 4,7s). A Eucaristia é interpelação da vida humana a partir já da problemática econômica em torno do alimento e das relações elementares entre pessoas… São Paulo usa justamente a terminologia litúrgica para falar da vida quotidiana e das relações concretas, “materiais”, econômicas na sociedade (cf. Rm 12, 1-2; 15,27; 2Cor 9, 12-15; Fl 2,15).
Isso nos indica que o compromisso da Igreja não é apenas e nem sobretudo com a esfera do sagrado, mas com a vida dos povos em sua totalidade. Consciência que está bem explícita nas “Seis Marcas” que orientam a ação pastoral da Comunhão Anglicana. Talvez deveria estar ainda mais explícita na ação mesma, desde a liturgia até as atividades pastorais:1. Proclamar as Boas Novas para a conversão; 2. criar comunidades, a partir da fé e do Batismo, como espaço de comunhão, mediante a Palavra, a própria convivência fraterna e a iniciação sacramental ao Mistério de Cristo; 3. para prestar serviços de amor a quem necessita; 4. para lutar contra as estruturas injustas da sociedade; 5. para zelar pela preservação e renovação dos recursos da terra; 6. para lutar pela paz e garantir sua realização.
Isso nos diz também que o Evangelho nos abre à mais ampla liberdade para enfrentar os desafios da Sociedade e entre eles o da exclusão e o da inculturação. Pois a Igreja não pode estar identificada com nenhuma tradição cultural determinada. E ao dizer cultura dizemos práticas organizacionais, práticas rituais e práticas doutrinais. O Apóstolo Paulo é tão coerente quanto a isso que chega a admitir a liceidade (questão gravíssima em sua época) de o cristão comer carne imolada aos ídolos, pois esses nada são. Ora, em seu contexto cultural isso representava tremenda ousadia. Como admitia que não se observassem preceitos “bíblicos” da Lei de Moisés, nem mesmo a circuncisão, que era o sinal de pertença ao povo de Deus. Tudo tinha de ser submetido a novo discernimento. E o critério central do discernimento tinha agora de emergir da prática das novas relações fraternas entre pessoas e entre povos. Era a lógica decorrência do princípio supremo de que já não estamos debaixo de uma lei abstrata que se nos impõe do exterior, e nos sujeita, e nos aliena de nossa liberdade, mas estamos sob a graça, estamos em Cristo, o que empenha toda a nossa liberdade criadora como responsabilidade de produzir a lei com autonomia, a partir da prática de novas relações. Nesse sentido a Igreja não tem uma moral pré-estabelecida, tem, antes de tudo, uma mística que deve tomar corpo em atos morais positivos, e essa mística é a experiência da filiação divina, da participação no mistério trinitário de Deus, que gera fraternidade entre todos os seres humanos,como nos ensina a Epístola aos Gálatas.
A Igreja, antes de ser instituição, é movimento de encarnação da vocação mesma de Deus, que escuta o clamor do povo onde quer que se faça ouvir, daí sua densidade católica. É neste sentido que a Igreja á “católica”, isto é, cada parte se refere ao todo, ou seja, em cada comunidade, em cada pequenino grupo reunido em torno da “memória subversiva” de Jesus, o que se tenta viver, o que se proclama e o que se celebra é a salvação que Deus está a operar por Seu Espírito, misteriosamente, no mundo inteiro. É testemunha da Palavra que interpela e julga a totalidade das relações e das estruturas humanas. É uma malha quase subterrânea. Em articulação profunda de fato com a “Igreja visível” há toda uma “Igreja invisível”, como fermento na massa, imensa rede de pessoas, de comunidades, de movimentos, de iniciativas semeadas no interior das nações, para fermentar, como sinal do Espírito presente no mundo, esse processo de transformação dos povos em povo de Deus. Por aí, creio, tem de passar o nosso compromisso. Nossa fé, antes de ser religiosa, é radicalmente mística e política.
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB