(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Não foi por acaso ou falta de uma expressão mais adequada que em 1492 Cristóvão Colombo relatou a suas Cristianíssimas Majestades, o rei e a rainha da Espanha, que sua expedição havia descoberto um “novo mundo”. Dali em diante, a velha Europa começou a olhar a parte sul do mundo como o novo, o desconhecido, a terra de aventura e esperança. Deveria ser um lugar onde novas coisas acontecessem, onde nova vida pudesse ser construída.
No entanto, esta nova vida nem sempre se mostrou compatível com a justiça, a liberdade e a felicidade. Os conquistadores traziam os valores do Evangelho ao recém-descoberto continente, acompanhando a cruz com a espada e a opressiva dominação que ignorou e desrespeitou os direitos dos povos aqui encontrados.
Desde o começo da colonização, a questão da justiça tornou-se inseparável do anúncio do Evangelho e da prática da fé cristã na América. Os abusos cometidos contra os indígenas que habitavam o continente Americano, por parte dos colonizadores, foram corajosamente enfrentados por vozes como a do dominicano Frei Antônio de Montesinos em sua pregação na ilha de Hispaniola (República Dominicana), em um sermão de Advento em 1511. Ao apresentar-se como “a voz que clama no deserto”, questionou os colonizadores pelo comportamento para com os índios: “Não são homens? Não têm almas racionais? Não estão vocês obrigados a amá-los como a si mesmos? Não compreendem isso? Não sentem isso?“
Mais de cinco séculos depois, aqueles que lutam pela justiça para com os povos que habitaram a Pátria Grande desde as origens se inspiram nas grandes e proféticas figuras de Montesinos (República Dominicana), Bartolomé de las Casas (Chiapas, México), Antônio Valdivieso (Nicarágua), Diego de Medellín (Chile) e tantos outros.
Entre os profetas de hoje que procuram seguir os mesmos passos estão muitos teólogos da libertação, bispos de gigantesca estatura espiritual e moral e inúmeros sacerdotes, religiosos de ambos os sexos e leigos, homens e mulheres que muitas vezes pagaram com a vida a denúncia que fizeram da injustiça incompatível com a fé praticada pelo sistema dominante.
Sob essa inspiração, igualmente, o Papa Francisco se dirigiu aos povos indígenas no México. Em San Cristóbal de las Casas, diocese do grande Dom Samuel Ruiz, chamado de “Tatic” – Papai – pelos índios, o Papa pediu “perdão” aos povos indígenas pelas “sistemáticas” incompreensões, súbitas exclusões e pela expropriação de suas terras. Consternado, exclamou ao iniciar sua homilia: “Que tristeza! Como faria bem a todos nós um exame de consciência e aprender a dizer perdão. O mundo atual, expropriado pela cultura do descarte, precisa de vocês. Em uma cultura do descarte, do consumo desenfreado, da depredação do meio ambiente, os povos indígenas são verdadeiros mestres e testemunhas, que devem ser ouvidos com profunda reverência e respeito pelo resto da humanidade. Seu estilo de vida pode salvar o planeta que se encontra seriamente ameaçado pela irresponsabilidade com que o ser humano trata a mãe natureza.”
Diante dos representantes dos povos indígenas, Francisco não economizou palavras para dizer: “Não podemos permanecer indiferentes perante uma das maiores crises ambientais da história. Nisso, vós tendes muito a ensinar-nos. Os vossos povos, como reconheceram os bispos da América Latina, sabem relacionar-se harmoniosamente com a natureza, que respeitam como fonte de alimento, casa comum e altar do compartilhar humano.”
É impossível não se sentir estupefato ao ouvir o Papa em pessoa pedindo perdão aos indígenas e que, por favor, nos ensinem valores cristãos como o amor à terra, o cuidado da natureza, o valor da gratuidade. Pois não eram esses que os colonizadores chamavam de selvagens e os teólogos da época chegavam a duvidar que tivessem alma? Não era a eles que se devia ensinar a verdade, pois viviam na ignorância e no erro, sem saber vestir-se e vivendo no politeísmo, adorando deuses não verdadeiros?
Em nome da difusão do Evangelho, o projeto colonizador não teve escrúpulos em arrasar a cultura, valores e tradição dos indígenas, rotulando-os como inferiores. Nem tampouco hesitou em espoliá-los de suas terras, tirando-lhes o meio de sobrevivência e a perspectiva de futuro.
Agora, o Papa Francisco lhes pede perdão e ajuda. Sim, ajuda! Pois se não são um pedido de ajuda as palavras do Pontífice, como interpretá-las então? “O mundo de hoje, espoliado pela cultura do descarte, necessita de vós. Os jovens de hoje, expostos a uma cultura que tenta suprimir todas as riquezas e características culturais, tendo em vista um mundo homogêneo, precisam que não se perca a sabedoria dos vossos anciãos. O mundo de hoje, prisioneiro do pragmatismo, tem necessidade de voltar a aprender o valor da gratuidade.”
Aos pés da Morenita de Guadalupe que, vestida com trajes indígenas, apareceu ao índio Juan Diego, Francisco rezou longamente. A Morenita, desde sua “ tilma” (o poncho no qual ficou gravada sua imagem e está exposto no santuário para onde acorrem milhares de peregrinos) e seu amor originário pelos povos daquela terra, certamente inspirou suas palavras.
Resta rezar e esperar que os orgulhosos ocidentais que somos saibamos escutar o Espírito que fala pelos povos originários, nossos ancestrais nesta pátria grande e tão amada que é o continente americano.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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