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O Concílio Vaticano II, ao promover a reforma litúrgica proporcionou a abertura da Igreja para que os fiéis pudessem ler as Sagradas Escrituras e rezar as orações próprias da Igreja, na língua falada por cada povo em seus países de origem. Assim é que, o Ofício Divino, também conhecido como Liturgia das Horas, pode se tornar acessível  a todo o povo, após ser traduzido do latim para as diversas línguas faladas no mundo cristão.

Dessa forma, o Concílio, através de sua primeira Constituição, a Sacrosanctum Concilium, sobre a  liturgia, veio afirmar  ser o Ofício Divino ação comunitária “para consagrar, pelo louvor a Deus, o curso diurno e noturno do tempo (SC 84), pertencente a toda a Igreja, e não somente ao clero (SC 84 e 100), vindo, também, enfatizar que o Ofício Divino é oração que o próprio Cristo dirige ao Pai, quando a Igreja ora e salmodia (cf.SC 7 e 83), considerando o Ofício Divino com fonte de piedade e alimento da oração pessoal!” (SC 90).

Posto isso, importa explicar o que é e qual a origem da Liturgia das Horas, o que permitirá adentrar ao Ofício Divino das Comunidades (ODC), que é o motivo deste artigo.

“O costume  de consagrar a Deus as primeiras horas e o findar de cada dia, é comum às religiões, está presente em tradições indígenas e é herança do judaísmo, de onde vieram Jesus e as primeiras comunidades cristãs. Nos primeiros séculos era comum, além da Eucaristia celebrada aos domingos, as comunidades cristãs se reunirem, sobretudo de manhã e de tarde e elevando a Deus preces de ação de graças e de intercessão, com plena participação do povo. Esta maneira de rezar da Igreja se tornou conhecida com o nome de Ofício Divino”.(*1)

Essa era a tradição vivida pelos cristãos desde o início do cristianismo, em que as comunidades cristãs reuniam-se para “cantar os salmos e proclamar o louvor de Deus, e em nome de toda a criação e da humanidade testemunhavam cantando as maravilhas daquele que nos libertou do poder das trevas e nos introduziu no reino da luz. (1 Pedro 2,10)”.  Essa oração do povo de Deus é a própria oração de Jesus Cristo, que se prolonga na Igreja, conforme Jesus mandou que se fizesse o que ele mesmo fez e ainda deixou uma forma de rezar ao Pai, sendo tudo isso  transmitido pelos apóstolos em suas cartas e nos evangelhos. Daí, “acreditar-se que Jesus tenha participado das preces nas sinagogas, em dia de sábado, “segundo seu costume”, cf. Lc 4,16) e nas preces do templo que ele chamou casa de oração (Mt 21, 13) e também nas preces que os israelitas individualmente faziam todos os dias. Até o fim da vida, já próximo da Paixão (Jo 12,27s), na última ceia (Jo 17, 1-26), em sua agonia (Mt 26,36-44) e na cruz (Lc 23,34-46; Mt 27,46; Mc 15,34), Jesus nos ensina que a oração foi sempre a alma de seu ministério messiânico e do termo pascal da sua vida.” (*2)  E assim, os evangelhos apresentam Jesus orando ao Pai em muitas ocasiões de sua vida, em cujas preces se fundamenta a oração própria da Igreja, qual seja, o Ofício Divino ou Liturgia das Horas, considerado por ela como um sacramental, como oração comunitária.

Entretanto, com passar do tempo, a tradição de em cada manhã, à luz do sol nascente, o povo, unindo-se à oração de Jesus ao Pai e à própria  ressurreição do Cristo, e sob essa luz começasse o dia no louvor e na súplica; bem como, ao chegar a noite, encontrando-se o povo vigilante na “luz que nunca se apaga” para dar graças a Deus pelas dádivas recebidas no dia que passou e acolher o repouso e a paz no Senhor, a oração do Ofício Divino deixou de ser do povo, e, fora as experiências dos mosteiros, perdeu seu caráter comunitário e sua relação com as horas do dia, fazendo com que o povo também perdesse a referência bíblica e litúrgica da espiritualidade, valores que foram sendo substituídos pela devoções. Nesse contexto, no lugar dos 150 salmos do Ofício rezados pelo povo ao longo do ano, esta oração foi sendo substituída pelo “rosário” com suas 150 ave-marias, ou do “terço” com. suas 50 ave-marias. E assim, no lugar de uma celebração nas horas do dia, adotou-se a oração do “ângelus“, de manhã, ao meio dia e de tarde, restando como reminiscência do Ofício Divino, apenas, o Ofício da Imaculada Conceição tal como hoje conhecemos no Brasil, principalmente no interior do Nordeste, contendo o conjunto dos hinos do antigo Ofício da Virgem Maria, como a única coisa que sobrou para o povo de toda a riqueza da Oração da Igreja, a qual nos foi legada pela tradição apostólica.(*1)

Sobre a oração do Rosário, cabe aqui uma breve e interessante explicação histórica, trazida por Dom Clemente Isnard, em seu livro: VIVER A LITURGIA, no capítulo em que trata sobre: O Rosário e o Ofício Divino das Comunidades, como se vê da transcrição:

“No dia 7 de outubro a Igreja celebra a festa de Nossa Senhora do Rosário, por ter sido neste mesmo dia de 1571 alcançada uma vitória da     frota cristã sobre a muçulmana, em Lepanto, perto da Grécia. O Papa da época, São Pio V, havia ordenado orações, e especialmente a oração do Rosário, para implorar de Deus essa vitória, que foi decisiva para quebrar o ímpeto conquistador dos turcos. O Papa  Gregório XIII instituiu, dois anos depois uma festa litúrgica de Nossa Senhora do Rosário na comemoração dessa vitória tão importante, atribuída à intercessão da mesma.”  

E continua Dom Clemente: “O Rosário é uma devoção mariana que remonta ao século XII… Embora se esteja de acordo que não foi São Domingos, o fundador dos Dominicanos, que criou o Rosário, a ordem Dominicana exerceu grande influência  em sua difusão. A partir do século XV, por influência dos monges cartuxos, da região de Colônia, na Alemanha, foi introduzida a meditação  dos chamados mistérios, isto é, de quinze  momentos da vida de Maria  e Jesus, divididos  em três grupos, os gozosos, os dolorosos  e os gloriosos.

Assim o Rosário, com suas 150  Ave Marias, se tornou uma inculturação para o povo simples, incapaz de ler e conhecer o latim, dos 150 salmos, recitados semanalmente na Liturgia das Horas.  A reza do Rosário recebeu um impulso muito grande nos últimos tempos devido à aparição de Nossa Senhora em Lourdes e ao favorecimento do Papa Leão XIII.

Depois do Concílio Vaticano II apareceu, desta vez no Brasil, uma nova inculturação da Liturgia das Horas. Um grupo de liturgistas de Goiás e do Nordeste, imaginou e propôs um Ofício Divino das Comunidades, em que o povo simples e mesmo analfabeto, era convidado a celebrar as Horas de Laudes e de Vésperas, diariamente, e a de Vigílias, uma vez por semana.”  …(*3)

E assim surgiu o “OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES, que é uma tentativa de inculturação da Liturgia das Horas, não apenas simplifcada em uma versão mais breve, mas transformada num jeito de rezar que sirva melhor às nossas comunidades. Ele possibilita que nos situemos  na grande tradição litúrgica  e, ao mesmo tempo, nos insere na realidade cultural  e religiosa do povo”  (ODC, pág. 8, da 12ª edição). (*4)

Elaborado sob a mesma estrutura da Liturgia das Horas, o ODC apresenta três momentos de oração: Vigília, Oração da Manhã ou Laudes e Oração da Tarde ou Vésperas e tal como na Liturgia das Horas, seus elementos são: os Hinos,  a Salmodia, a leitura bíblica, os Cânticos do Novo Testamento (de Zacarias, da Virgem Maria, de Simeão), Preces da comunidade, Pai Nosso e Oração seguida de uma Bênção final. (*3)

Compõem a estrutura do ODC os seguintes elementos: (*4)

Inicia-se a ABERTURA, com versos bíblicos cantados, os quais motivam  para o encontro com Deus e os irmãos e ajudam a mergulhar na oração, sendo entoados por quem preside o Ofício e repetidos pela assembleia comunitária. Este canto dispensa livro para acompanhar, pois é repetição do que foi entoado pelo cantor.

Após a Abertura, segue-se a RECORDAÇÃO DA VIDA, um elemento especial em que a comunidade traz à oração a vida, os acontecimentos de cada dia, as pessoas, suas angústias e esperanças, as realizações e as decepções, as lembranças marcantes da história, da Igreja, dos povos, e  dos próprios fenômenos da natureza, como sinais de Deus na realidade e na vida das pessoas. Essa partilha espontânea dos fatos da vida  ajuda a tornar a oração verdadeira e prepara para a escuta da Palavra de Deus.

O HINO é o elemento que marca a hora do dia, o tempo do ano ( Advento, Natal, Tempo Comum, Quaresma, Páscoa), e a festa litúrgica (ex. Pentecostes, Corpus Christi, Cristo Rei, Festas Marianas, etc.) ou também alguma data importante ou acontecimento maior da comunidade.

A SALMODIA. O próprio Ofício Divino é um canto de louvor em meio às dores da vida. Esse louvor é expressado nos salmos, pois os Salmos são o livro de cantos e orações da Bíblia, utilizado pelo povo de Deus da primeira aliança e depois por Jesus, por Maria e pelos apóstolos, que o legaram às comunidades cristãs, desde os primeiros séculos, como base da sua oração e expressão do seu louvor. No Ofício Divino das Comunidades, o salmo é introduzido por uma frase do Novo Testamento que o atualiza fazendo a ligação com a experiência de Jesus. Neste Oficio, os salmos foram traduzidos em linguagem poética popular para serem cantados com melodias enraizadas na cultura do povo. A forma de cantar os salmos é alternando-se em dois grupos, expressando na salmodia o diálogo entre Cristo e a Igreja e concluindo com a invocação “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Além desse glória tradicional, o ODC usa outras  formas mais livres, que possibilitam a união com  comunidades  de outras religiões. Por isso, de acordo com antigas tradições orientais, também damos glória a Deus como Mãe e como fonte de amor, presente em todas as culturas e religiões. “O Espírito Santo é nossa Mãe que nos gera para a vida nova” (São Macário).

Cantados e partilhados os salmos, após o silêncio meditativo, vem um elemento essencial no ODC, que é a LEITURA BÍBLICA. Esta pode ser a do dia, que deve ser proclamada da própria Bíblia ou do Lecionário ou ainda, em situações de perigo, de emergência ou de acontecimentos maiores, poderão surgir outras opções de leitura.

A MEDITAÇÃO. Depois da leitura toma-se um tempo de silêncio para a meditação da Palavra de Deus, podendo-se partilhar entre os irmãos os sentimentos, impressões e apelos  que a  Palavra de Deus fez surgir entre as ouvintes,  se tratando de um debate ou discussão, mas de acolhimento  da Palavra do Senhor, tornando-a viva e atual na vida da comunidade. É recomendável cantar um refrão ligado à leitura para ajudar a relembrar a Palavra de Deus. Quando a leitura é do Evangelho, costuma-se cantar de pé, antes da proclamação, uma aclamação aleluiática, ficando a assembleia voltada para o ambão, onde se encontra o Evangelho.

O CÂNTICO DO NOVO TESTAMENTO vem de louvável e antiga tradição que, nos domingos e dias de festa cante-se no ofício da manhã o Cântico de Zacarias (Lc 1,68-79), ao despontar para nós o Sol da Justiça; à tarde o Cântico de Maria, o Magnificat  (Lc 1,46-55), dando graças ao Pai por sua manifestação na História; e à noite, o Cântico de Simeão (Lc 2,19-32), pela gratidão e alegria de quem viu  a salvação acontecer.

PRECES,  PAI NOSSO, ORAÇÃO. As preces no ODC, são propostas por pessoas e as respostas preferencialmente cantadas pela comunidade a cada pedido que pode ser feito pelo texto constante do próprio Ofício ou espontaneamente por quem desejar. No final todos recitam ou cantam o Pai Nosso acrescentando: Pois vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre, como faziam  as comunidades dos primeiros séculos e como é costume ate hoje nas Igrejas evangélicas e nas celebrações ecumênicas. O que preside conclui as preces com uma breve oração.

Encerra-se o ODC com uma BÊNÇÃO em que se pede a Deus, que nos ama com amor de mãe, que nos conceda a sua bênção e a sua força na luta que continua. O que preside despede a assembleia dizendo ou cantando: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Todos respondem: Para sempre seja louvado!   

Por toda essa riqueza litúrgica e espiritual que o Ofício Divino das Comunidades contém, Dom Clemente Isnard, afirma, no livro acima citado: (*3)

 “A grande tradição litúrgica é a Liturgia das Horas, cujos momentos de oração remontam a São Cipriano, bispo de Cartago, no século III, e que foi magnificamente renovada por determinação do Concílio Vaticano II pelo Papa Paulo VI, talvez o Papa de inteligência mais profunda de nosso século”.

Sobre o Ofício Divino das Comunidades ele assim escreve: “A inserção na realidade cultural  e religiosa do nosso povo dos salmos metrificados e rimados, com palavras populares, com textos sempre cantados, facilita até aos analfabetos aprendê-los de cor. Uma grande novidade é a abertura com muitos versículos de inspiração bíblica, cantados,pelo dirigente e repetidos pela assembleia e cujo efeito é maravilhoso.
É uma inculturação mais bem feita do que a do Rosário, porque mais fiel ao modelo que não pode deixar de ser a Oração Oficial da Igreja, a Liturgia das Horas”.

E termina desejando “que a inovação brasileira do Ofício Divino das Comunidades se universalize, e que um dia, da mesma maneira que em Lourdes Nossa Senhora rezou o Rosário com santa Bernadete, numa próxima aparição do século XXI, ela se apresente com o Ofício Divino das Comunidades em sua mão”.

BIBLIOGRAFIA:
(*1) Penha Carpanedo, pddm, In Formação Litúrgica em Mutirão – OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES – Uma Liturgia das Horas,  Ficha 55 (CNBB) 2008;
(*2) OFÍCIO DIVINO – Instrução Geral sobre  a Liturgia das Horas, pág.15, segunda edição, Ed. Vozes, Paulinas,Paulus, Ed.Ave-Maria 2004;
(*3) D.Clemente Isnard , OSB, In ViveraLiturgia, pags.50/51, Edições Lumen Christi 2008;
(*4) OFÍCIO DIVINOS DAS COMUNIDADES, pags.7/14, 12ª Edição – Paulus – 1994.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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