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Certos intelectuais afirmam que a religião é uma ilusão que se mantém por conta da pobreza e da ignorância humanas. E acrescentam que as religiões são meros fenômenos culturais inventados, reinventados e desinventados ao longo da história. Serão, pois, as religiões simples miragens, fantasias ou desejos das pessoas não esclarecidas e empobrecidas? Se assim fosse, precisaríamos apenas de mais esclarecimento kantiano (aufklärung) e mais justiça econômica e os problemas do mundo estariam resolvidos. Não creio que seja assim, como não creio que as religiões sejam portadoras de todas as soluções. Nem uma coisa, nem outra.
Será, por outro lado, a religião uma necessidade sine qua non para que o ser humano possa subsistir à consciência de suas fatais limitações? Dirão uns que não, porquanto há muitos que vivem sem ela. E até confessam viverem felizes, com um punhado de esperanças e não serem menos humanos que outros. Será isso uma forma de negar a religião exatamente para dizer que precisam dela, mesmo que seja com outros contornos ou atributos? Poderá, no mais íntimo de si, alguém viver sem uma razão profunda a que se possa chamar, ainda que genericamente, de princípio religioso?
Terá, a rigor, o ser humano condições antropológicas ou psicológicas para, em última análise, se bastar em sua auto-suficiência? Não o creio, mesmo porque no limite das forças humanas e do alcance da inteligência há sempre a possibilidade dos ateus e dos que se dizem sem crença afirmarem sua esperança na não efetivação de sua total derrota. Daí que a concepção de religião se alarga para além de todos os mitos, ritos, instituições e do conjunto das supostas ilusões. Tornar-se-á, desse modo, a religião uma necessidade tal como o é o alimento, a bebida e o descanso? A questão segue em aberto.
Religião é terreno de múltiplas e incessantes perguntas complexas. E também de algumas tentativas de explicações esperançadoras. Será caminho de busca de verdades? Mas o que é a verdade? Será um feixe de princípios éticos? Mas, não será possível ética humana sem religião? De todo modo, quando a religião deixa de ser questionadora, perde um dos elementos centrais de sua natureza. E quando perde seu potencial ético, sua capacidade de promover a solidariedade, a justiça, a vivência fraterna e a libertação, fracassa em sua essência.
A partir do último quarto do século XX, as religiões se revitalizaram e se expandiram, fenômeno que o sociólogo Antônio Flávio Pierucci chama de “dessecularização”. Esse retorno do sagrado deu-se especialmente com o fim do socialismo real. Não obstante o avanço da modernidade e da ciência, a religião não morreu como muitos preconizavam. Mesmo nos países mais secularizados, o número dos que seguem uma religião supera em muito os que se declaram ateus. Clara demonstração do fenômeno da dessecularização são os novos movimentos religiosos, sejam eclesiais, extra-eclesiais, paraeclesiais ou não eclesiais. Muitos deles se projetaram através do uso acentuado da mídia, especialmente a partir dos anos 1970.
Nos tempos atuais, a sociedade experimenta paradoxos gigantescos. De um lado cresce o número dos que se declaram ateus, sem religião e sem crença. Terão esses a necessidade ou a ilusão de fomentar a secularização? De outro, há um significativo número de fiéis/crentes de ocasião que se somam aos fiéis tradicionais e renovados. Assim, enquanto alguns defendem a importância da secularização, outros lutam pela sua superação; enquanto alguns buscam mais religião, outros querem a sua redução; enquanto uns usam a religião para explorar, muitos ainda empenham grandes esforços para que a religião e as teologias assumam seu profundo caráter profético e libertador.
Em nome do esclarecimento da ciência moderna e do alcance das tecnologias não se justifica o direito de afirmar de modo desprezível que toda expressão religiosa ou teológica deriva da ignorância, ilusão ou fantasia humana. Há algo bem mais profundo na religião que explica e sustenta a sua existência para além de todos os maus usos que se possa fazer dela. De outra parte, para superar possíveis formas de infantilização, exploração e dominação por meio da religião e das instituições que a coordenam, é necessário seguir discutindo abertamente. Religião sem reflexão crítica poderá provocar tantos males quanto a ciência sem princípios éticos.(04.12.2013)
Obs: O autor é Doutor em Sociologia, pós-doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.