PARTE III: A ARTE
A manifestação artística não tem a obrigação de oferecer um discurso à moda do das ciências em geral. Embora seja possível argumentar que qualquer discurso científico é artístico, a maior parte do discurso artístico não é científica. A arte, se assim o quiser, pode mesmo ter o intuito de confundir as coisas e não o de as explicar. Isso seria inimaginável para a ciência. Ela, ou pelo menos a ciência legítima, só existe por uma razão: tentar explicar racionalmente e de forma verificável o mundo. A explicação racional e verificável é a condenação de todo cientista.
A arte é livre (o que não é necessariamente bom) e, utilizando tal liberdade, por vezes escolhe explicar inclusive a ciência. Assim, a arte não se manteve imune à idéia da influência do sujeito no objeto, só que esta idéia se aplica à arte de forma diversa do que o faz em relação à ciência. Para a ciência, a influência é indesejável, pois contamina o objeto. Para a arte, quando ocorre, é indiferente, a não ser quando faz parte da própria mensagem que o discurso artístico apresenta. Aqui está uma curiosidade bastante interessante da arte: ela é capaz de se apropriar de um elemento dificultoso do discurso científico e torná-lo objeto do seu próprio discurso.
Algumas das manifestações artísticas incorporaram a idéia de influência do sujeito no objeto com tal veemência que chegaram mesmo a apresentar obras artísticas em que o sujeito não apenas influenciava o objeto (como ocorre na ciência em geral), mas propriamente se confundia com ele. Devemos sempre notar que a confusão, nesses casos, é intencional.
Nas artes cênicas, por exemplo, podemos citar a manifestação denominada de environmental theatre (teatro ambiental), que foi em grande parte popularizada por Richard Schechner. O teatro ambiental é uma forma de happening, só que explicitamente teatral. Em tal concepção, o sujeito observador da cena não apenas interfere na própria cena, assim como o sujeito na análise em geral interfere no objeto analisado, mas efetivamente constrói a cena em parceria com os atores. O espectador no teatro ambiental, além de ser observador scene watcher é também criador da cena scene maker, de maneira que sujeito e objeto se confundem em uma só pessoa.
É muito importante demonstrar um ponto aqui. A confusão de que falei no argumento sobre o teatro ambiental tem uma característica: o observador da cena se confunde com criador da cena em relações diferentes. Tentarei explicar. Como o observador da cena, embora interfira nela (sendo também criador dela), não se vê a si mesmo na cena em que interfere, ele pode ser definido como um sujeito finito. Sujeito finito aqui é aquele que não se observa a si mesmo no objeto que analisa. O infinito seria aquele que, além de interferir na cena, a cena que observa é não apenas criada com sua ajuda, mas ela, a que efetivamente é observada pelo sujeito, é formada por ele.
Em um primeiro momento, podemos dizer que não é possível termos sujeitos infinitos no teatro, pois não podemos nos tornar dois sujeitos, senão ficticiamente. Será que aparatos de espelhos no palco poderiam criar no teatro ambiental sujeitos infinitos em cena? Por algum tempo, pensei que sim, mas depois me convenci que não. Minha mudança de opinião se deu porque, no caso em tela (o de uma cena de teatro ambiental com espelhos), observaríamos sujeitos vendo reflexos de si mesmos, o que é diferente de observar-se a si mesmo.
O que simplesmente aconteceu comigo foi que me convenci de que sujeitos são sujeitos e não reflexos de sujeitos. Para que a arte pudesse criar situações em que haveria sujeitos infinitos, seria necessário imaginarmos uma situação em que o sujeito se veria a si mesmo e este que ele veria teria de ser da mesma natureza de que ele era constituído, pois haveria de ser ele mesmo. Como o reflexo de algo é de natureza diversa do que é refletido, podemos concluir que espelhos não são ferramentas capazes de criar sujeitos infinitos no teatro ambiental.
Penso que a criação do sujeito infinito é um desafio a ser enfrentado pelas artes cênicas, embora eu acredite que uma interpretação possível de certos quadros possa lançar alguma luz sobre esta dificuldade. Antes de ir à análise de um quadro exemplificativo desses que mencionei, talvez agora seja o momento de parar um pouco na evolução do argumento para tentar estabelecer os pontos que já vencemos.
Assim, vou tentar agora resumir neste parágrafo o que vimos até então nesta seção, para depois continuar o argumento. Em primeiro lugar, estabelecemos que o sujeito e o objeto são elementos distintos entre si. Depois, vimos que, apesar da diferença entre ambos, o sujeito necessariamente influencia o objeto ao estudá-lo, de forma que as ciências em geral têm se esforçado para equacionar o problema da falta de objetividade no estudo. Por fim, demonstramos que a arte, por ter compromissos diversos dos do discurso científico, pode dar-se ao luxo de manipular esta idéia. Assim, há manifestações artísticas que correlacionam tão intensamente o sujeito com o objeto que não apenas estabelecem entre eles uma relação de influência, mas sim de confusão, lembrando sempre que a confusão aqui é intencional e se dá em relações diferentes. Por fim, conceituamos os sujeitos finitos e infinitos. O finito é aquele que não se vê a si mesmo, enquanto o infinito é o que consegue fazê-lo.
(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org
Obs: A PARTE IV será postada no próximo dia 05 de outubro.