Ei.
Sou eu quem te abriga ao longo dos anos. O rosto, coberto e massacrado, carrega dores que vêm de muito longe, e você me faz escravo da lembrança de antepassados que sucumbiram aos horrores da escravidão. A voz que me fala é muda, às vezes sussurrante, rouca…não encontra eco. A voz que me fala está presa em sufocadas palavras, amordaçada boca, fustigado rosto por máscara de folha de flandres que calam minha voz nos nós formados na garganta por lágrimas engolidas.
Chorar é sinal de fraqueza, disseram-me, e eu acreditei. Então, melhor é fingir-se durão, engolir todos os entulhos que envenenam e continuar na competição. Mas sou eu quem sofre suas dores.
Basta! Agora, os afetos vêm à tona e reclamo, clamo, imploro por cuidados. Agora, enxergando-me por diversos ângulos, percebo-me sendo você, corpo e alma como reflexo do mundo e de mim, criatura com tamanha complexidade que às vezes se vê de fora, como se o reflexo no espelho fosse mais forte que o olhar que o vê. Então, pareço-me vulto de mim, fora de mim, a me observar de longe. E sou você. E não vejo outra saída. Somos, eu e você, a via mais próxima para sair dessa articulação dolorosa que travamos no congestionamento desse temporal….
Com as lentes embaçadas, acordo, escuto o vento e os pingos da chuva que entram no meu quarto; fecho a janela, encaro o espelho e , no reflexo que me olha, deparo-me com o ser estranho que sou. Lágrimas sorridentes escorrem pelo meu rosto, pulam saltitantes e se mostram como um frescor torrencial que flui para dentro de mim, com a percepção tranqüila que agora tenho, no finalzinho da madrugada.