PARTE IV: O SUJEITO INFINITO EM LAS MENINAS

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Penso que um modo específico de analisar o quadro de Diego Velásquez Las Meninas pode proporcionar mais aprofundamento sobre a idéia do sujeito infinito. Vejamos, então, o referido quadro:

Apresentar ou interpretar uma obra de arte não é tarefa simples. Enquanto, de um lado, pensadores como Michel Foucault (1999, p. 3-21) se debruçaram sobre a obra Las Meninas, dissecando-a de forma magistral, do outro, filósofos como Arthur Danto (1986, p. 23-27) se empreendem na tarefa de demonstrar o quão cheio de peculiaridades é o ato interpretativo da obra artística.

Ciente das dificuldades, nada obstante, comentarei primeiramente alguns pontos da obra de Velásquez; depois, demonstrarei como não apenas pode o sujeito finito ser apreendido referida obra, mas também sujeito infinito será susceptível de apreensão. Assim, para que eu demonstre como vejo esta questão, sigo brevemente na apresentação da obra.

O primeiro ponto a se notar no quadro é o de que o espectador é chamado a participar da obra, pois, à exceção de quatro personagens (incluindo o cachorro), todos os demais olham para você, espectador, que está olhando para o quadro. Ademais, esses que nos olham são, no contexto do quadro, personagens não secundários, a incluir o próprio pintor, que representa o Velásquez.

Com efeito, no quadro Las Meninas, há espaço para discussão a respeito da localização onde se encontram os que representam (sujeitos) e os que são representados (objetos). O referido quadro possibilita o desenvolvimento da idéia de um sujeito que se vê, ou seja, que é representado e, como tal, também é objeto; é dizer, “o que olha e o que é olhado permutam-se incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito” (Foucault, 1999, p. 5).

É muito importante notar algo neste ponto: o sujeito (espectador) vê um objeto (quadro) que o vê por meio de seus personagens e que, por isso, ele, que era antes sujeito, pode ser definido como objeto de outros sujeitos (personagens do quadro). Assim, todos são ora sujeitos, ora objetos, mas não sujeitos e objetos na mesma relação, ou seja, são assim apenas em relações diferentes.

Temos aqui os sujeitos finitos, também presentes nas manifestações do teatro ambiental. Realmente, é interessante notar que o sujeito é o espectador do quadro, que aos olhá-lo pode também pensar que é o objeto olhado pelos personagens do quadro, em especial pelo pintor. Na versão das artes plásticas, é o mesmo objetivo que o “teatro ambiental” leva adiante, qual seja, o de criar a obra artística fora dos limites planejados. A arte não está apenas no quadro, no espaço limitado pela moldura, mas na interação com aquele que observa o quadro, assim como o cientista não estuda o objeto exatamente, mas sim o que decorre de sua interação com ele, tal como reza o fenomenalismo (Lycurgo, 2008, p. 56-60).

Analisemos agora como seria possível a existência do sujeito infinito na arte. Um exemplo possível está no quadro de Velásquez, caso lhe seja dada uma interpretação específica. Esta interpretação haverá de ser a de que o quadro que o pintor aparece pintando na obra seja a própria obra que vemos. Não sei se consegui ser suficientemente claro aqui. Então, pensemos com cuidado. A pergunta que eu gostaria de responder positivamente é a seguinte: há no quadro Las Meninas alguma possibilidade de interpretação que traga para a obra o sujeito infinito? Creio que sim, mas apenas na hipótese em que consideremos que aquela tela que se vê contida no quadro é a própria tela Las Meninas quando ainda era pintada. É como se o quadro apresentasse a obra Las Meninas em dois momentos. Um momento está no quadro para o qual olhamos: o quadro maior. Outro momento está no quadro menor, que está de costas para o espectador e de frente para o pintor retratado no quadro maior.

Notemos que, de acordo com a interpretação que expus acima, o pintor do quadro pinta-se a si mesmo e, portanto, vê-se a si mesmo, sendo assim um sujeito infinito. Antes de apresentar um falso problema no parágrafo posterior a este, devo deixar desde já bem claro que o sujeito que pinta-se a si mesmo somente será considerado infinito porque ambos são formados da mesma natureza. Ou seja, ambos o pinto no quadro maior e ele mesmo (pintado no quadro menor) são pinturas, formados de tinta. Em um auto-retrato convencional, em que um ser humano pinta-se a si mesmo em um quadro teremos dois elementos de naturezas diversas: de um lado, alguém de carne e osso; do outro, alguém de tinta. Aprofundarei essa discussão logo a seguir.

Para tal aprofundamento, analisemos um problema fictício que decorre de uma dúvida razoável. A dúvida que poderia surgir aqui é a seguinte: ora, conforme se disse, todo auto-retrato criaria um sujeito infinito? Não, não criaria e a razão é relativamente simples: em um auto-retrato, temos uma pessoa que pinta um quadro, afinal a pintura de uma pessoa em um quadro não é uma pessoa, mas antes uma pintura, conforme já se adiantou anteriormente. Embora tal constatação pareça à primeira vista ser por demasiado óbvia, ela não é. Para ilustrar a desvinculação da arte da realidade (idéia que toma força na Modernidade e consolida-se na Contemporaneidade), podemos lembrar-nos da história que contam de Matisse. Segundo a história, o pintor francês, ao ser questionado em uma exposição em 1905 em Paris sobre a mancha verde no rosto da pessoa retratada por ele no quadro Retrato de Madame Matisse com base na idéia de não haver mulheres verdes, respondeu que aquilo que se via não era uma mulher, mas sim um quadro.

Retomando o argumento, podemos dizer que nem todo auto-retrato cria um sujeito infinito, já que a pessoa do auto-retrato não é uma pessoa nos termos em que a pessoa que o pintou é. Querendo ser o mais claro possível, posso dizer assim: no auto-retrato, temos uma pessoa real que pinta uma versão de si, mas tal versão não é ele mesmo, mas sim uma versão em tinta de si. Ora, se, no “teatro ambiental”, concluímos que nem o reflexo de uma pessoa é a própria pessoa, mas sim simplesmente seu reflexo, o que dizer de querer comparar alguém de carne e osso com outro de tinta? São, portanto, sujeitos diferentes, se levarmos as coisas às últimas instâncias.

No quadro de Velásquez, o pintor que aparece pintando a tela é exatamente aquele que deve estar na tela pintada. Ele (exatamente ele) está em dois lugares e isso só é possível porque uma pessoa pode perfeitamente estar em dois lugares. Ela só não pode fazer isso ao mesmo tempo. O quadro grande e o pequeno são o mesmíssimo quadro, em tempos diferentes. Velásquez, portanto, pintou o tempo em sua obra para poder viabilizar o sujeito infinito, pelo menos conforme esta interpretação. Efetivamente, parece ser uma boa sugestão teórica a de que somente em manifestações artísticas em que há subversão da representação cronológica do tempo é que se poderá vislumbrar a possibilidade de existência do sujeito infinito.

Outra colocação que poderia ser feita é a seguinte: por que não podemos ver o quadro que o pintor pinta? Se pudéssemos ver o quadro que o pintor pinta e pudéssemos constatar que se trata de uma Las Meninas em construção dentro da Las Meninas concluída, não seria bem mais simples configurar o sujeito infinito? Penso que a resposta também é não, pelas razões que explicarei. Imagine que o quadro mostrasse a frente do quadro que o pintor está pintando. Teríamos aqui apenas um quadro sendo pintado dentro de outro quadro diferente daquele, por mais que fossem parecidos. Quadros, por mais parecidos que sejam, não são iguais e, portanto, não representam a si mesmo em tempos diferentes, mas sim quadros essencialmente diversos, diferentes, embora muito parecidos.

Talvez este parágrafo que escrevo agora não fosse necessário, mas vou escrevê-lo para reforçar a idéia exposta no anterior. Para que o sujeito infinito possa ser vislumbrado é necessário que ele se veja na obra de arte em que ele mesmo interfere, ou melhor, que ele mesmo ajuda a criar. Foi essa a idéia que apresentei quando falei do teatro ambiental. Se o quadro que está de costas para nós na obra Las Meninas pudesse ser visto, não haveria como dizer que ele era a própria Las Meninas, já que haveria de ser diferente, nem que essa diferença fosse perceptível microscopicamente ou, se nem mesmo assim, quimicamente. Com certeza, pelo menos quimicamente falando, poderíamos demonstrar que a tinta que está ali não é a que está no lugar correspondente do quadro grande.

Não haveremos como saber se Velásquez pensou nas impossibilidades teóricas decorrentes da manutenção da idéia de sujeito infinito em um quadro grande em que se pudesse ver a frente do quadro pequeno. O certo é que o pinto optou por não mostrar a face do quadro pequeno e, graças a isso – pelo menos é como eu penso –, manteve-se aberta a possibilidade de existência do sujeito infinito em sua obra. Isso se deu já que a identidade entre quadro grande e pequeno pode ser estabelecida no âmbito interpretativo da obra, sem chances de ser desmoronada pela investigação da dessemelhança (mesmo que ínfima) entre dois quadros que se mostrassem frontalmente.

Ademais, é importante notar que é procedente a crítica de que o quadro de costas (o pequeno) dentro do quadro Las Meninas (o grande) não assegura que ele seja o próprio quadro pintado. Em resposta a isso, pode-se dizer que não assegurar não é exatamente negar, de forma que a interpretação de que os dois são o mesmo quadro em tempos diferentes é possível. Não posso assegurar que não choverá nesta madrugada, mas também não posso negar, de forma que mesmo em caso de chuva isso não me será uma surpresa, mas apenas a materialização de uma possibilidade. O mesmo ocorre em relação ao quadro, mas com uma diferença: entender que se tratam o quadro grande e o pequeno da mesma obra decorre de elemento volitivo de minha parte no sentido de construir uma interpretação possível da obra de arte, o que é bem diferente da interpretação que se fazem do futuro em relação aos fenômenos da natureza, com a chuva. Além disso, pelo menos até onde posso pensar, a interpretação de que coexistem o quadro grande e o pequeno em Las Meninas é a única que viabiliza a existência do sujeito infinito na obra e, por isso, pode legitimamente ser mantida, pois a investigação é a de se há interpretação possível na arte da qual decorra a existência do sujeito infinito.

Assim, devemos notar que não apenas vimos que o sujeito infinito existe em uma interpretação possível, mas também que ele somente encontra espaço hábil para a sua existência na manifestação artística em geral e, em especial, nas artes plásticas. Isso porque vimos que não são todas as manifestações artísticas que podem apresentar o sujeito infinito, mas apenas aquelas que conseguem manipular (subverter) artisticamente um dos elementos mais complexos da existência: o tempo. Somente assim, subvertendo a seta do tempo, é que seria possível apresentar o sujeito que se vê a si mesmo. Como exemplo ilustrativo de obra que fez isso (que apresentou o sujeito infinito), vimos e analisamos a obra Las Meninas, de Velásquez.

Vencidas as conclusões principais a que chegamos, talvez seja o momento de deixar uma provocação para o pensamento: sabemos que nas artes plásticas é possível o sujeito infinito, mas o que dizer das artes cênicas? Há possibilidade de construção de espetáculo em que possamos identificar o sujeito infinito? Uma eventual tentativa, que penso que tem problemas reais e instransponíveis, seria a de imaginar uma cena em que um espelho refletia a imagem de uma pessoa refletida em outro espelho. Teríamos aí um reflexo vendo-se a si mesmo? Sim, mas sempre dependente do sujeito de carne e osso a ser refletido no primeiro espelho. Penso que esta dependência, por razão que não aprofundarei neste momento, não legitimariam o sujeito infinito, pois atacaria o seu próprio conceito de sujeito.

De toda sorte, tenho para mim, pelo menos por enquanto, que não é possível nas artes cênicas a construção do sujeito infinito, mas não demonstrei isso neste artigo, mesmo porque demonstrar impossibilidades é essencialmente mais difícil (senão inexeqüível) do que possibilidades. Afinal, não há como se provar fatos negativos, que não ocorreram.

Para provar que é possível o sujeito infinito na arte, contudo, basta que apresentemos uma obra artística em que isso ocorre, conforme fizemos em relação à obra Las Meninas. Eis a prova de um fato positivo. Foi o que fiz quanto às artes plásticas. Para demonstrar que não é possível nas artes cênicas, é inviável, por óbvio, a tarefa de elencar não apenas as obras teatrais existentes, mas também as de possível existência. Apenas demonstrei que no teatro ambiental, manifestação que, conforme apresentado, eventualmente seria a mais propícia para a existência de sujeitos infinitos, isso não ocorre, nem mesmo com o uso de artifícios como espelhos. Tratou-se apenas de um exemplo, de sorte que, se este artigo tem uma conclusão fechada pela possibilidade de existência do sujeito infinito nas artes plásticas (pois demonstrou isso em Las Meninas, repito), ele deixa um campo aberto para a discussão: a questão de se isso seria eventualmente possível nas artes cênicas. É o desafio, decorrente das idéias aqui expostas, que respeitosamente deixo para todos.

(*) Tassos Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB); Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Atualmente, leciona as disciplinas Direito Processual do Trabalho e Elementos de Direito Autoral e Legislação Social na UFRN. Página Acadêmica: www.lycurgo.org

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