Maria-Clara23

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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As primeiras acepções do verbo sapere em alguns dicionários são todas ligadas a sabor, ao paladar. O  substantivo saporis, aliás, surgiu como derivado de sapere. Em latim, o saber propriamente dito, ligado ao intelecto e ao conhecimento, nasceu mais tarde por extensão figurada.

Pode parecer meio estranha esta conexão  entre o paladar e o intelecto, mas a lógica dessa expansão de sentido é bem semelhante à que liga o sentido do paladar e a sensação do gosto (“sabor”) ao gosto (“juízo, discernimento”). Ter um paladar apurado significava ter gostos cultivados, refinados – que como se diz hoje, tem afinidade com o saber:  “saber das coisas”.

O caso do adjetivo sapiens (“sábio”) é elucidativo. Famoso por seu emprego na expressão homo sapiens: sua primeira acepção em alguns dicionários é “que tem bom paladar, que é conhecedor ou entendedor”. No verbete sapientia (“sapiência, sabedoria”), o nexo entre uma coisa e outra  fica ainda mais claro. Bom paladar, ao mesmo tempo em que é gosto apurado para conhecer o sabor dos alimentos, também e não menos consiste em  aptidão, habilidade, capacidade, instrução; razão, bom senso.

Inegavelmente, em nossos dias, a questão do comer e da gastronomia tem andado em evidente alta.  Aquilo que para a minha geração tinha o acento mais na reunião ao redor da mesa, seja da família ou de amigos; o que na militância política e social era entendido, segundo a categoria marxista como “reposição da força de trabalho”, passa a ser objeto de estudos apurados, refinamento de combinações de elementos vários para obter um sabor especial, invenção criativa de novidades e inusitadas surpresas.  A gastronomia passa a ser uma carreira promissora para as novas gerações e área respeitada de pesquisas e estudos, o que demonstra mais uma vez a conexão indissolúvel entre o sentido do gosto e a razão.

O que passa pela boca passa pela cabeça, então?  Sim, sem dúvida.  Assim como os excessos da boca e do estômago refletirão seguramente sua conexão nos efeitos desastrosos que produzirão na mente.  É o caso do alcoolismo, que afeta a tantos; da obesidade, que já se transforma em epidemia sob os aspectos nacional e mundial; da bulimia, anorexia e outras doenças da beleza e da estética ligadas à alimentação e ao comer, sintomáticas em uma sociedade desordenada como a nossa.

Por isso, o paladar deve ser educado, da mesma forma que todos os outros sentidos.  Em nossos dias, assistimos a um desvirtuamento desse importante sentido e também dos outros.  Os agrotóxicos poluíram nossas mesas; ingerimos alimentos para satisfazer nossa fome, sem saber se estamos deglutindo doenças, pestes e morte.  O ato de tomar o alimento e degustá-lo em comunidade desapareceu de nossas vidas.  O advento da televisão, do celular, do tablet e de outras tecnologias que nos capturam e aprisionam por inteiro impedem que o estar à mesa, comendo e exercitando o paladar conviva com o exercício da razão, do saber, da conversação, das trocas do coração.

A família raramente se reúne em torno da mesa.  Em geral, cada um tem um horário e a comida pronta e requentada ao micro-ondas será engolida sem degustação e humanizante saborear em frente à televisão, ou ao computador, ou ao celular.  Desconectaram-se paladar e pensar, paladar e sentimento.  Comer volta a ser um ato animal.

E, no entanto, “o reino dos céus é como um banquete”, diz o evangelista Mateus. Nesta bela e sugestiva metáfora jesuânica, encontramos o elemento definitivo para pensar a importância do paladar como um sentido profundo para a vida humana.  Quando comemos e bebemos nos fazemos vivos, partilhando a mesa, vivendo a cumplicidade, a amizade, a fraternidade.   Ao saborear o alimento em comunidade exercemos essa extraordinária capacidade que nos foi dada e nos diferencia dos outros animais: celebrar a vida em todas as suas dimensões. O que é apenas saciar uma necessidade biológica se transforma em ritual de louvação da vida, aspiração principal do ser humano.  Através do gosto da comida saboreada à mesa e em convivência, Jesus de Nazaré identificou a beleza desse ato com o Reino de seu Pai.

A presença de Deus junto aos homens e mulheres por Ele amados se manifesta e revela de sua forma mais plena e densa no banquete do qual participam pecadores que recebem o perdão, mulheres que são valorizadas e reintegradas em sua dignidade e todos os que têm fome e sede de justiça.

   A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

  Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected]

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