dom seb a morte

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Recentemente, estive com Madalena, minha mulher, a participar de especial missa de sétimo dia. Celebrávamos a memória de amigo e parente querido.

A morte é sempre momento traumático. É o mais certo de acontecer. Mas é como se não a aguardássemos. É freqüente as pessoas não estarem preparadas quando chega. De fato, sabemos que virá com certeza, mas nunca nos acostumamos e pouco aprendemos. E dela, na verdade,  nada sabemos. É pura escuridão. Para escapar, busca-se refúgio em crendices, ou se tenta fazer de conta que nunca chegará, criamos em torno de nós muralha de falsas seguranças, como aquele homem de quem Jesus fala  em parábola,  no evangelho: semeou seus campos, colheu abundante safra, ampliou os armazéns, comeu e bebeu para comemorar sua riqueza, e pensou: “Agora posso estar seguro para o resto da vida”, e foi dormir tranqüilo. Durante a noite ouviu o recado: “Idiota, esta noite mesmo se pedirá contas de tua vida”, e rodeado de bens inesperadamente morreu… Na verdade, a morte é sempre palavra sobre a vida. Quem se vai na morte, deixa-nos lição sobre a vida.

A lição bíblica do Livro da Sabedoria (cf. Sb 3, 1-6) nos falava do destino das pessoas justas que se vão desta vida: A olhos humanos, quem morre se assemelha facilmente a réu de castigo inexorável. Na verdade, porém, sua vida está nas mãos de Deus, no qual puseram sua confiança. Diante da morte, somos chamados(as) a contemplar a vida em sua dimensão escondida, ultrapassar as aparências e mirá-la em raio-X, em sua face secreta, misteriosa. Se fôssemos adiante na leitura da sabedoria bíblica, como, aliás, de textos de tantos  outros povos, certamente chamariam nossa atenção comparações como  estas: “A vida do ser humano é tão breve como de uma flor, de manhã viçosa e perfumada, de tardezinha seca ao calor do sol”; “somos como relva verde que logo murcha e vai alimentar o fogo”; “de manhã passas e admiras sua beleza, mais tarde voltas e já perguntas: onde estava?” é que “a vida não passa de um sopro”; “vai-se o fôlego e voltamos ao barro”; “os dias voam como o vento”… A Bíblia fala disto como “carne”, isto é, a precariedade da condição de criatura, marcada pela fragilidade, a degradação e a morte. Nosso ser inteiro, espírito-corporal, é “carne” como todas as coisas deste mundo. Quem é verdadeiramente sábio consegue perceber a caducidade e precariedade da existência e, mesmo assim, compreende o sentido profundo de nosso peregrinar terreno.

Na leitura do evangelho, Jesus se apresentava como “o Caminho” (Jo 14, 6). Não apenas como quem ensina a caminhar, mas como “o lugar”, o chão no qual se pisa. O chão e o rumo da caminhada. É caminhando n’Ele que firmamos o passo e aprendemos a viver. Não se trata só de imitá-Lo. É muito mais, é fazer-se uma só coisa com Ele, n’Ele fixar nossos pés, como pedra de alicerce. Inclusive porque, à medida que “caminhamos n’Ele”, tornamo-nos Caminho para outras pessoas, guias na estrada, chão de pisar.

Durante a celebração, preparada com esmero, entoamos cânticos muito bonitos e significativos para a ocasião. A tônica era o amor. Só em amor chegamos a experimentar a vida com sentido. Ganhamos novos olhos, coração, mãos e pés transformados para viver e enxergar o Caminho. Pelo amor se opera transfiguração. O Apóstolo São Paulo dizia que nos tornamos como “nova criatura”, “nascidos(as) de novo”, para outra dimensão do viver e de olhar a vida.

Pois bem, num dos cânticos havia um verso que dava todo o sentido do que estávamos a fazer ali: “Quero que a minha oração possa me amadurecer/ leve-me a compreender as consequências do amor”. A oração como pedagogia, escola de amadurecimento da vida em vista de “compreender as conseqüências do amor”. Aprender a viver como prática amorosa. Oração que não é fim em si mesma, é meio, que não nos aliena da prática quotidiana da vida, ao contrário, é feita para nos amadurecer na prática de amar. Oração que não nos dispensa de pôr as mãos na massa, tantas vezes custosa, do dia a dia de nossas relações. Voltamo-nos para Deus e Ele, generosamente, não nos retém para si, antes, respeitosamente, nos devolve a nós mesmos(as) e às pessoas que nos cercam, em círculos cada vez mais amplos: a família, a vizinhança, o ambiente profissional, o círculo de amigos e amigas, nosso bairro, a cidade, o país, os pobres e necessitados(as), os povos, o planeta, o mundo universo… inclui estranhos(as) e estrangeiros(as), alarga o perdão a inimigos(as). É nas relações com as outras pessoas, mediadas sempre por instituições e estruturas sociais, políticas e culturais, que se testa a verdade de nosso amor a Deus e, consequentemente, a autenticidade de nossa oração e gestos religiosos (cf. 1ª Epístola de São João, cap. 4, v.7-21). É que só existe amor, realmente amor, quando, nas relações entre nós, somos jogados(as) para fora e para além de nós: “para fora” quer dizer na direção das outras pessoas e do conjunto da realidade do mundo; “para além” indica o horizonte que nos ultrapassa infinitamente, a saber, Deus. “Para além” do humano só o Divino. Por isso, diz-nos a Bíblia: “Quem ama conhece Deus, porque Deus é Amor”. E só as relações que nos alargam e nos elevam para além de nós são autenticamente de amor. Como dizia belamente Santo Agostinho no IV século d.C: “É o mais alto de tudo o que é alto em mim (Deus) e, ao mesmo tempo,  é mais íntimo que meu próprio íntimo (amor)”. Ora, se o amor é a própria definição do Divino, porque divino, é eterno e universal, exclui qualquer fronteira.

Amor só é amor se é universal, sem barreiras, que se alarga e alonga na direção de todas as pessoas e de tudo, mediante a compaixão por todos os seres do universo, como nos ensina a espiritualidade budista, em muitos aspectos tão próxima do Sermão da Montanha, de Jesus. É a fonte de nossa humanização, enquanto nos faz ultrapassar, transcender a nós mesmos(as) e a tudo. Santo Agostinho volta para nos dizer isto de maneira insuperável: “Inquieto permanece nosso coração enquanto não repousar em Ti”. Plenitude de vida é vida no amor, vida de amor e por amor; e vida amorosa é, necessariamente, vida divina. Pois amar é assimilar-se a Deus.

Ao jogar-nos em rosto a precariedade da vida e das coisas que nos cercam, a morte nos fala, indicando claramente o Caminho que só as relações humanas de amor nos fazem entrever. Só o amor nos amadurece como seres humanos. Só o amor nos torna efetivamente pessoas adultas. É a tarefa, a luta de toda a vida. Nunca estaremos prontos(as), sempre aquém de tão sublime destino, tornar-se divino(a). Por isso, porque é tornar-se divino(a), é tão difícil tornar-se adulto(a), simplesmente tornar-se gente. É que há um preço a pagar: desprender-se de si mesmo(a), soltar-se de si, entregar-se, renunciar, negar-se até. É passagem dolorida de condição infantil de chamar a atenção sobre si para a condição adulta de sentir-se chamado(a) adar atenção às demais pessoas e ao mundo em torno. Alguém já disse: “Para tornar-se adulto(a), é preciso aceitar sofrer a dor do crescimento”.

Só o amor nos faz livres, nos leva a ultrapassar-nos, transcender-nos nas relações com outras pessoas e o mundo e, assim, nos alarga e eleva para além de nós e de nossa pequenez. No Caminho do amor, nos entregamos, vamos muito além de nossos caprichos e gostos, renunciamos e nos sacrificamos até. Alguém, de amor e por amor, pode até chegar a morrer por outrem. E quantas pessoas já não chegaram a isso! Pensemos em profetas e profetisas de todas as épocas, em Jesus, nos Apóstolos e apóstolas que O seguiram e sofreram perseguição, em irmã Dorothy Stang, em Dom Oscar Romero, Martin Luther King, irmã Dulce, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga e tantas outras. Quantas pessoas em nosso próprio país têm sido perseguidas, presas, torturadas, assassinadas, só por se devotarem à causa de outras pessoas injustiçadas, oprimidas, desprezadas e excluídas!  Amor não equivale a simpatia, nem mesmo a sentimentos de bondade, nem a paixão erótica, pode até incluí-los, mas é, por si mesmo, decisão de realizar um projeto de vida que inclua a vida de outras pessoas como se fizessem parte da minha própria.

É curioso que muita gente pensa que liberdade é “fazer o que quero”, sem considerar a realidade das outras pessoas e do mundo. Não seria liberdade, mas prisão e escravidão aos próprios caprichos. Ser livre é ser mais plenamente “em si”, possuir-se a si mesmo(a), o que só acontece quando se é capaz de entregar-se, pois só se entrega quem se possui. É curioso, aparentemente paradoxal: só se é em si, quando se é para além de si. Quem se fecha “para si” mostra a própria carência e necessidade, não é livre. Só somos livres na medida em que já não necessitamos. Quando crianças, necessitamos que nos deem atenção; tornar-se adulto(a) é sentir-se chamado(a) a dar atenção a outrem. Quem é da área de Psicologia nos diz que amadurecer, ser adulto(a) é passar à atitude oblativa, oferecer-nos, entregar-nos. Só o amor nos faz livres, nos liberta da necessidade e, no extremo, nos dispõe a entregar a própria vida, na certeza profunda de que quem ama não morre, sim, porque quem ama já está em Deus. Vai-se tornando como Ele. Já não necessita, não carece, vai-se tornando dom. Na verdade, quem ama aprende a já não esperar recompensa, pois o prêmio do amor é a própria sensação de amar. O amor acha sentido em si mesmo, como Deus. Por isso, liberdade, amor e serviço(entrega de si) são palavras que se exigem uma as outras.

O contrário a amadurecer no amor é fechar-se por medo de perder-se. Por isso, diz-nos a Bíblia: “Só o amor vence o medo”(cf. 1Jo 4, 18), vence até mesmo o medo de morrer, de não ser. Ou seja, o medo é que impede de amar, fecha-nos em nós com sentimento de defesa. Jesus nos diz que “só se acha quem arrisca perder-se” (cf. Mc 8, 34-38). É na relação humana que nos humanizamos. Só nos arriscamos a relacionar-nos se nosso ponto de partida é a confiança e já não mais o medo. É a tarefa de toda a vida, amadurecer no amor, na confiança, na superação do medo de ser e de partilhar a vida. Partilhar a vida, nosso ser, dons e o que temos só é possível se não tememos perder-nos. Sabemos bem, por experiência, que não é fácil. Com mais freqüência do que possamos imaginar ou admitir, reagimos, como se dá com as crianças que, de repente, têm de dividir o brinquedo com o irmãozinho ou irmãzinha mais nova que chega. Por imaturidade, suspeitamos de que se compartilhamos o “brinquedo” (a vida é nosso brinquedo de adultos(as)), arriscamos ficar sem ele. É desse sentimento de medo  que nascem os desvios: imaginamos achar segurança no dinheiro, no poder, nos bens, na capacidade de consumir, na aparência, no prestígio dos títulos e “status”… e pomos as relações humanas em segundo, ou até, último plano. Não teremos amadurecido “para compreender as conseqüências do amor”. Vencer o medo é que possibilita amar; só quando se ama se vence o medo. Só quem ama se torna capaz de arriscar confiar em outrem. É o Caminho divino que nos é proposto. Aí, sim, na vida intuímos que a morte não tem a última palavra. O amor pede ser eterno, porque é divino. Quem realmente ama se sente e se mostra transfigurado (cf. Mc 9, 1-10).

De repente, a morte de alguém, cuja memória celebramos, se torna palavra sobre a vida, se faz palavra de vida para nós: que nossa oração nos amadureça “para compreender as consequências do amor”, amadurecer no conhecimento de que só pelo amor é que passa o Caminho de tornar-nos pessoas humanas. E Cristo nos convida a assumir-nos como “pessoas humanas”, humanizadas realmente para poder nos sentir em Deus, basta ler o Sermão da Montanha. Há pessoas que chegam realmente a esse nível de maturidade, a ponto de dizer como Santa Tereza d’Ávila (mística espanhola e reformadora da Igreja no século XVI): “Só Deus basta”.

Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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