mario 1

Sem dúvida, vivemos tempos conturbados. A falência dos padrões do passado e a ineficácia das soluções tradicionais, ocasionadas pelas rápidas e sucessivas transformações sócio-culturais, fazem-nos sentir pouco à vontade na sociedade em que vivemos. Para agravar a situação, deparamo-nos, dia após dia, com múltiplas e, por vezes, desconcertantes leituras da realidade, que nos dão a impressão de que somos estranhos em nossa própria terra. A crise é geral e atinge variados setores, como a família, o ensino, a cultura, a política e a economia. Este contexto problemático atinge fortemente também o cristão.

O homem fragmentado

De fato, esta sociedade, que podemos caracterizar como pluralista e secularizada, não mais proporciona ao cristão o respaldo social que ele usufruía no passado, quando os valores cristãos e a voz da Igreja eram acolhidos e respeitados, tendo as verdades da fé como referências básicas na vida dos cidadãos. Em nossos dias, a cultura venera a subjetividade, cultua a liberdade e absolutiza o direito individual. Cada um escreve sua autobiografia como melhor lhe parece. Nada mais é aceito somente porque vem transmitido do passado, sem trazer uma justificação anexa.

Ao reinado do indivíduo acrescenta-se a enorme quantidade de saber, inabordável por uma única pessoa. Com isso, temos acesso apenas a fragmentos da realidade, desconfiamos do que sabemos e do que acreditamos, tornamo-nos pragmáticos e nos consolamos através do consumo de objetos e sensações. A instabilidade cultural leva muitos de nossos contemporâneos a buscar saídas para o previsível mal-estar. Alguns cedem à tentação fundamentalista, entregando sua liberdade a gurus em busca das ansiadas certezas. Outros procuram refúgio em sentimentos intensos, aliando-se a alguma das modalidades dos movimentos pentecostais.

Outros, enfim, caminham na direção de crenças orientais, onde julgam encontrar luz e sentido. O traço marcante, nestas tentativas, é a perspectiva de auto-ajuda que as domina. De fato, elas estão centradas no próprio indivíduo, que as utiliza para seu próprio conforto espiritual ou sua paz interior. Esta situação é agravada por um traço cultural dominante nos dias atuais: todos querem ser felizes já, todos buscam a auto-realização plena nesta vida, deixando para o segundo plano a vida eterna. Deste modo, silenciam a verdade cristã de que o Reino de Deus só se realizará plenamente para além da história, numa vida inserida em Deus.

Desafios

Como vemos, o cenário atual constitui um sério desafio para o cristão. Todos nos sentimos um pouco sozinhos, constituindo uma minoria. Uma desvantagem? Teria sido melhor ter nascido em séculos anteriores? Não creio. Pois percebemos claramente que a fé é uma opção pessoal, uma aventura que corremos. É escolher construir a própria vida pelo modelo da existência de Jesus de Nazaré e também um risco, que exige muita confiança em Deus, fundamento da nossa fé, consistência da nossa esperança. Mas não era assim no Antigo Testamento? A fé de Abraão, partindo para o desconhecido por confiar em Deus? A fé dos pobres e dos pequenos? A de Maria, acolhendo a interpelação de Deus, sem saber o que o futuro lhe reservaria?

No entanto, ela disse: – “Faça-se em mim a tua vontade”.

Hoje, temos a oportunidade de viver a fé de modo mais autêntico do que as pessoas de alguns séculos atrás, que se amparavam em uma sociedade natural e culturalmente cristã. Uma sociedade pouco exigente de liberdade. Poucos acreditam, a não ser no que lhes convém acreditar. Para nós, cristãos, é a pessoa de Jesus Cristo, sua história, suas palavras e ações, que fundamentam nossa fé. O modo como Jesus viveu sua existência permanece fascinante e atraente através dos séculos. Ao confessá-lo como Filho de Deus e Salvador da humanidade, ao procurar concretizar, embora imperfeitamente, sua existência histórica na minha vida, experimento que minha opção é a certa, confirmando minha caminhada à medida em que a vivo, fornecendo luz e certeza à minha opção.

Como exprimiu São Pedro, que fez esta experiência: “Senhor, Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).

A coragem de se despojar

A característica de risco inerente à fé cristã é atestada fortemente no Novo Testamento. “Quem quiser salvaguardar sua vida, perdê-la-á; mas quem perder sua vida por minha causa, a salvaguardará” (Mt 10, 39). Observe-se que a segurança da salvação implica confiança, não em coisas ou em raciocínios, mas numa pessoa (“por minha causa”).

Na mesma linha, Jesus afirma, segundo outro evangelista:

– “Quem quiser conservar sua vida, perdê-la-á; quem a perder, conservá-la-á” (Lc 17, 33).

Aqui, conservar significa poupar sua vida, não arriscar, mantê-la para si, apegar-se a ela (Jo 12, 25). Poderíamos sintetizar as palavras do Senhor deste modo:

– quem investir sua vida, com base em certezas humanas, correrá o risco de perdê-la; quem a investir, com base na promessa e na fé, vai ganhá-la e salvá-la.

Paulo, depois de elencar os motivos humanos que o levariam a confiar em si mesmo, afirma taxativamente:

“Todas estas coisas, que para mim eram ganhos, eu as considerei como perda por causa de Cristo” (Fl 3, 7).

“Por causa dele, perdi tudo e considero tudo isso como lixo, a fim de ganhar a Cristo” (Fl 3, 8). Há, aqui, uma perda que resulta num ganho, como, aliás, vem constantemente repetido na Sagrada Escritura. “Parte da tua terra, da tua família e da casa de teus pais para a terra que te mostrarei” (Gn 12, 1). “Então, deixando logo as redes, eles o seguiram” (Mt 4, 20). Como vemos, o mistério pascal, a morte e a ressurreição, a kenosis (o esvaziar-se da própria natureza) e a glorificação (Fl 2, 6-11), estão fortemente presentes na vivência da fé, característica muito esquecida num tempo de cristandade.

Sal, luz e testemunho

Numa época em que se acentua tanto a subjetividade e a liberdade, é importante que percebamos ser a fé cristã uma modalidade de realização da própria liberdade. Não a investimos em bens materiais, em satisfações pessoais, em busca de poder e de prestígio, em compromissos passageiros e superficiais. Investimos nossa liberdade em Jesus Cristo, em seus valores, em suas vivências, em seus ideais. Não temos uma atitude egocêntrica diante da vida, que nos empobreceria humanamente e nos condenaria à solidão.

Hoje, temos a oportunidade de viver
a fé de modo mais autêntico do que
as pessoas de alguns séculos atrás, que se
amparavam em uma sociedade natural
e culturalmente cristã

Procuramos ter, como Jesus, o centro de nossa vida fora de nós, levando a sério o outro, sensibilizando-nos com seu sofrimento, sua indigência, sua carência. Viver para o outro certamente resume bem o ideal cristão. Parece uma perda, mas é um enorme ganho, como confirmam os que entram seriamente nesta aventura. Ser conscientemente cristão, em nossos dias, significa, sem dúvida, remar contra a corrente e se perceber como minoria na sociedade. Conseguimos realizar esta proeza porque a força de Deus, o Espírito Santo, anima-nos interiormente. Somos diferentes porque somos sal da terra e luz do mundo. Somos diferentes porque testemunhamos o Cristo vivo entre nossos contemporâneos.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]