professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

Tive o privilégio de conhecer o Pe. Fernando Bastos de Ávila SJ desde menina. Minha avó era grande amiga de sua mãe, Dona Cynira. Fernando, o filho jesuíta, era assunto de todas as conversas entre aquelas amigas que tinham em comum tantas coisas, sobretudo a fé. Orgulho de Dona Cynira, objeto da admiração profunda de suas amigas, Pe. Ávila foi algumas vezes à casa de minha avó enquanto eu ainda era bem pequena e ouvia sem piscar suas palavras inteligentes e inspiradas.

Muitos anos depois, já casada e mãe de filhos, fui encontrá-lo novamente em cursos, seminários, palestras. E ele sempre recordava que me havia carregado ao colo em pequena. Sua visão lúcida e sua eloquência de um brilho raro tornavam absolutamente sedutoras suas agudas análises da realidade brasileira, pronunciadas em um português elegantíssimo e mais que perfeito.

Muitas coisas que ouvi de seus lábios naqueles anos 70 tornaram-se posteriormente triste realidade. Como, por exemplo, a comprovação de que vivemos em cidades sitiadas, em um intolerável “apartheid” social. Quando o morro e a periferia resolvessem marchar para o centro das cidades, uma onda de violência seria desencadeada, pois as vítimas da injustiça cobrariam o que lhes era devido, aterrorizando as cidades brasileiras. Hoje vemos a confirmação de suas palavras, que nos doem ainda mais pensando que boa parte disso poderia ter sido evitada se medidas de justiça pelas quais homens como o Pe. Ávila clamavam tivessem sido tomadas.

De 1975 a 1977 trabalhei na CNBB, cuja sede naquele momento ainda era no Rio de Janeiro, antes da mudança para Brasília. Ali encontrei muitas vezes o Pe. Ávila, assessor constante da Conferência, responsável pela análise de conjuntura em cada assembleia. Igualmente saíram de sua mente e sua pena, referendados pelos bispos, vários dos mais corajosos e importantes documentos no momento da ditadura militar. Talvez um dos mais importantes tenha sido “Exigências cristãs de uma ordem política”, onde são postulados os pontos não negociáveis de uma “polis” livre e justa, segundo a inspiração do Evangelho.

Nos anos 1990 trabalhei no Centro João XXIII-IBRADES, por ele fundado. Durante muitos anos ele dirigiu o Centro com competência e coragem. Durante os tempos da ditadura militar foi chamado ao DOI Codi e submetido a interrogatórios que questionavam a linha política do Centro. Para nossa equipe multidisciplinar de pesquisadores, sua presença era preciosa: dava-nos sempre valiosas contribuições e ajudava-nos a ultrapassar a visão ingênua ou distorcida da realidade que pudesse haver nos planejamentos, pesquisas e trabalhos desenvolvidos.

Quando passei a ser professora da PUC em tempo integral, acrescentando à docência e à pesquisa a coordenação do Centro Loyola de Fé e Cultura, voltei a encontrá-lo. Por diversas vezes ele foi convidado a compartilhar sua experiência e sabedoria em seminários e palestras do Centro Loyola e sempre atendeu nossos convites com a disponibilidade e a competência de sempre.

A equipe central do Centro criou inclusive um prêmio com seu nome: Prêmio Pe. Ávila de Fé e Cultura, entregando-o cada ano a uma pessoa ou grupo que houvesse se destacado por sua atuação em favor do diálogo entre a fé e a cultura. E no primeiro ano tivemos a honra de entregar esse prêmio ao próprio Pe. Ávila. Lembro-me de sua emoção ao recebê-lo e de nossa alegria.

Hoje, sua partida ressalta a importância de seu legado. Foi um homem que realizou de uma maneira singular a síntese proposta pela Companhia de Jesus em suas últimas Congregações Gerais: o serviço da fé inseparável da promoção da justiça. Como intelectual e pesquisador, procurou conhecer profundamente a doutrina social da Igreja, a fim de definir uma linha clara que pudesse orientar a prática dos cristãos, equidistante dos extremos do socialismo marxista e do capitalismo liberal. Ele o chamaria Solidarismo, e essa perspectiva marcou todo o seu trabalho.

Sua entrada para a Academia Brasileira de Letras coroou seu indiscutível valor como intelectual. O fato de ser, ao mesmo tempo, um religioso e um sacerdote tão atuante na sociedade e na igreja do Brasil punha em relevo a feliz síntese de sua pessoa: uma luminosa inteligência posta integralmente a serviço da fé e da justiça. Que a Igreja do Brasil possa seguir aprofundando seu importante e consistente legado! E que ele desfrute plenamente da “plenitude espontânea” da vida em Deus, termos com os quais sempre definiu a Ressurreição. Muito mais do que quando recebeu o fardão, agora vive Ad Imortalitatem!

Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/

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