Vivo o terrível dilema de um final de relacionamento. Diariamente, qualquer contato sinaliza para a aproximação inevitável do último, o que me deixa resignadamente calado. A fonte, outrora tão fértil, agora seca. Procuro algo, que antes era tão abundante, e quase nada encontro. É o ponto final a espera de oportunidade certa para se fincar a minha frente. E, ao tempo em que o lastimo, pela separação, que, a esta altura do campeonato, será eterna, penso no rodízio que ocorrerá, vislumbrando uma fila de quatro, a espera do instante devido de estar ao meu lado, pelo menos um, me servindo, silencioso, não permitindo que nada me falte.

Refiro-me ao tinteiro de cor preta, a tinta se esvaziando, de tanto ser usada, já não ocupando espaço, que possa ser medido, a ponto de exigir, nos momentos atuais, a inclinação do tinteiro, para que a caneta capte algo suficiente para o seu uso regular. E, na fila de espera, os tinteiros de cor azul, adquiridos há vinte e cinco anos, no comércio de Maceió, na minha sempre lembrada passagem pelo estado alagoano. Em conseqüência, saio da assinatura na cor preta – que Jefferson Fonseca de Moraes, advogado dos mais ilustres, valoriza, como marca pessoal – e, passo, para a cor azul, a fim de não perder os tinteiros que ainda conservo.

É certo que poderia adquirir outro tinteiro de cor preta. Mas, e os quatro de tinta azul, que fazer? A conveniência do bolso me manda usa-los. Enquanto ainda estou na ativa, tendo onde fazer a caneta descer na linha de uma assinatura, nos relatórios, votos e despachos/decisões monocráticas. Fora daí, abro um espaço para esclarecer, não uso a caneta tinteiro, me sustentando em outras, muitas das quais adquiridas em supermercados. A caneta tinteiro – e é por isso que um tinteiro dura quase três anos – é de uso especial, aliás, especialíssimo, reservada apenas e tão somente para as assinaturas. A caneta é uma princesa, que só em ocasiões especiais aparece em público.

Serapião Antonio de Góes, saudoso e solene escrivão do Registro Civil de Itabaiana, se privilegiava, em cartório, com a exibição de uma garrafa contendo tinta azul, que alimentava sua caneta, na redação dos termos de seu cargo, letra graúda, uniforme, com uma assinatura inconfundível de quem aprendeu a escrever quando ainda se valorizava a letra legível. Uma garrafa! Não um tinteiro, de pouca e escassa tinta, mas uma garrafa, um litro, que deve ter ficado sem serventia depois de sua aposentadoria.

De minha parte, o meu cabedal se resume a quatro tinteiros, todos de cor azul, com uma história especial: comprei logo vinte, em 1985, em Maceió, para não correr o risco de não me deparar com a negativa de sua falta. Ao fato acrescento outro, detalhe que pode traduzir minha velha e estável relação com a caneta tinteiro: exceto os anos iniciais de magistratura, dos tempos de juiz de direito de Nossa Senhora da Glória, passei a utilizar, desde anos que não localizo, acreditando que, ainda, no trajo de juiz de Campo do Brito,a caneta tinteiro, inicialmente, e, de lá para cá, muitos tinteiros me serviram e muitas canetas passaram pelas minhas mãos, sem que nenhuma delas tenha batido, em precisão e em encanto, uma velha Parker 51, igual, mesmo na cor, da utilizada por Getúlio Vargas na assinatura da carta-testamento.

Com ela fiz questão de assinar o termo de posse no Tribunal Regional Federal [da 5a. Região], numa homenagem a velha companheira de magistratura, a se tornar mais importante que a decisão que subscreve, porque só ela, no seu traçado ímpar, confere a autenticidade devida a um punhado de textos a simbolizar um comando. É como a noiva, a chegar por último, mas não com atraso, para chancelar a autoridade do magistrado, com a fixação de sua assinatura.

A caneta aludida, presente imemorial de tio Eladio, cujo nome – Eladio Carvalho – ilustra seu dorso, transformou-se, ao longo dos anos, na companhia mais fiel de toda a minha carreira de magistrado federal, desde os idos em que me encontrava em Maceió, em longos vinte e cinco anos de uso quase diário, a pena macia a deslizar, suavemente, pelo papel, na confecção de uma assinatura única.

Agora a cor preta chega ao final. A azul pede preferência, pacientemente, como uma antiga namorada que fecha os olhos para a fase em que foi preterida por outra, e, agora, sabe que voltará a ocupar o pódio do dia a dia, fornecendo a tinta para a assinatura devida. Ou seja, a rainha de ontem retornando ao trono.

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Publicado no Correio de Sergipe

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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