professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Como todos os cariocas, acompanhei preocupada as notícias sobre o clima de violência no Rio, o relato dos embates entre traficantes, milícias, polícia, exército, enfim não sei quantas instâncias portadoras de armas e poder maior ou menor apavorando toda uma população já sofrida e oprimida.
Como a maioria, igualmente, me vejo agora observando o controle aparentemente real da polícia e das UPPs em alguns dos pontos mais violentos do Rio, vide as comunidades do Complexo do Alemão, e que parece estar dando certo.
Análises lúcidas e muito mais fundamentadas do que a minha já foram feitas. Recomendaria vivamente a leitura da lúcida análise do ex-secretário de Segurança Luiz Eduardo Soares, que profetiza o declínio do tráfico e alerta contra a falácia do pastiche midiático que encobre e camufla a realidade e a gravidade da situação. Segundo ele, o tráfico, estrangulado, vive o desespero de seus últimos estertores.
Gostaria apenas de, aqui, defender um conceito de justiça que me parece essencial não apenas do ponto de vista da fé e da teologia – meu ponto de vista específico e especializado – mas do meramente humano. Se o que a fé e a teologia dizem não for humano ou não tocar nas fibras mais sensíveis da humanidade, de pouco valem. Assim o entendeu o Concilio Vaticano II ao afirmar que a Igreja é “perita em humanidade”.
Como modesta representante do gênero humano, sinto-me irmanada em humanidade com todos os envolvidos na tragédia recente de nossa cidade: bandidos ou mocinhos (sic), de um lado ou de outro. E sobretudo com os pobres, habitantes dessas comunidades carentes, honestos pais e mães de família, crianças indefesas, jovens. Todos são vítimas, de uma maneira ou de outra.Devido à falta de justiça que impera em nossa sociedade e faz de nosso país, embora tenha crescido em respeito no cenário internacional, um dos mais desiguais do mundo, todos são vítimas.
A injustiça é a mãe perversa da violência. À medida que cresce, se avoluma, gera rancor, amargura e faz com que corações se endureçam e o desespero leve as pessoas que se veem sem saída buscá-la onde não existe. Começa pequeno, vai crescendo e de repente alguém mais esperto resolve organizar. Pronto. A coisa ganha dimensões gigantescas e envolve todo mundo em sua espiral mortífera.
Como bem afirma Luiz Eduardo Soares, em momento de aguda crise não adianta pensar em soluções paliativas. Há que se fazer cirurgia e cortar fundo, a fim de estancar a hemorragia que ameaça deixar exangue a cidade e todos os seus filhos. Porém, uma vez a ferida comece a cicatrizar, há que pensar com a cabeça e sobretudo com o coração.
Acumular cadáveres e exibi-los como troféus não vai nos levar muito longe. Toda justiça meramente retributiva acaba cobrando o mesmo preço que pagou. Disso a humanidade tem experiência desde os tempos bíblicos. E Jesus de Nazaré não se cansa de ensinar isso em seu Evangelho. Seu conselho de amar os inimigos, dar a outra face ao agressor e caminhar duas milhas não é uma insanidade, mas apenas um caminho para re-encontrarmos o caminho de nossa humanidade que ameaça perder-se.
Toda justiça só é justiça se for restaurativa, justamente porque apenas aí se entra em um processo de reconstrução do que se perdeu em humanidade com a violência. O sistema carcerário, no Brasil e no resto do mundo, é um exemplo disso. Claro que deve haver instituições que privem os criminosos de sua liberdade, mas não para torturá-los ou torná-los ainda mais peritos em crime. E sim para reabilitá-los e devolvê-los ao convívio social sanados da distorção de comportamento que os levou à prisão. Ora, o que vemos é, ao contrário, delinquentes primários serem presos e se tornarem criminosos contumazes e de alta periculosidade devido à falta absoluta de condições que a carceragem oferece.
Exercer justiça, sim. E todos damos graças a Deus pela eficiência que a polícia tem demonstrado nessa última crise que o Rio vive. Parece que entramos em um caminho que pode ter solução e saída. Mas é preciso que o objetivo seja sanar os problemas e restaurar a normalidade. Não a punição e a violência devolvidas duplicadas ou triplicadas à violência exercida e criminalizada.
A cidade, o país, clamam por uma reflexão e sobretudo por uma prática séria em torno de como introduzir real e concretamente a justiça restaurativa no tratamento de seus grandes conglomerados urbanos. Quem sabe isso não levará a uma feliz decisão de rever o resultado do plebiscito de 2005, que decidiu pela manutenção da legalidade do porte de armas?
Uma cidade desarmada e justa para todos – podemos e devemos sonhar com isso sobretudo quando nos preparamos para celebrar o Natal, festa da impossibilidade feita realidade de um Deus assumir nossa humanidade dividida e pecadora. Bom Advento para todos e todas com estas reflexões que esperamos frutíferas.
Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros.
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