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02/01/2015
– Fernando de Mendonça me assombra!
Quando recebi 23 de Novembro, do escritor paulista-pernambucano Fernando de Mendonça (1984), estremeci.
Lembrei com um estrondo de trovão, com um lampejo de pensamento o dia em que li, “de uma sentada só”, Um Detalhe em H[1], o primeiro livro de ficção de Fernando. Era uma tarde no mês de Junho de 2013. Penso que chovia um pouco – feito chovia ontem. Não me lembro. Não sei. Só sei que os personagens Hugo e Helena, que carregam o “H” maiúsculo em suas costas, me retiraram do centro, me desestabilizaram, e eu não conseguia colocar mais os meus pés no chão.
Recebo 23 de Novembro. A capa, cor de prata, após a capa ouro de Um Detalhe em H poderia refletir uma predileção pelo primogênito em detrimento ao segundo filho de Fernando. Mas lembrei – e não lembro onde, quem, lido ou escutado – que no Antigo Testamento houve uma época em que o ouro valia menos que a prata, e isto é bem significativo aqui nos dois livros do autor.
Quase um mês após o recebimento de 23 de Novembro, no primeiro dia do ano, tomo o livro em minhas mãos. Sento na minha cadeira predileta da biblioteca. Começo a folheá-lo, sentir o aroma das páginas recém-impressas, o toque nas letras recém-impressas com a ponta de meus dedos, e é feito me transportasse para o momento da sua concepção, lá em 2007 – nos informa a biografia-poema-em-prosa no final do livro. Não, não começo pelo final, mas pareço advinha-lo, e essa náusea que, durante a leitura de 23, vai aumentando, e crescendo, até atingir o insuportável.Fernando narra a história de Irene. Uma jovem esposa, mãe de família, que trabalha com editoração de livros, e que, nas antevésperas de seu aniversário de 28 anos, se vê encurralada, se percebe em vertigem com o seu próprio abismo.
Notamos Um Detalhe em H inserido em 23 de Novembro, dialogando com 23 de Novembro. O uso da lagartixa na abertura daquele, em um cenário deste que nos remete ao cenário daquele – o quarto de hotel em Irene, o quarto de casa em Hugo – reforça o sentimento kafkaniano em Fernando de Mendonça, reforça a minha náusea, a minha desestabilização ao ler as suas linhas por inteiro.
A epígrafe do livro, extraída de Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector talvez possa me salvar quando leio que
Tenho a impressão de que alguém vive a minha vida,
que o que se passa nada tem a ver comigo,
há uma mola mecânica em alguma parte de mim
Eu quero simplesmente isso: o impossível. Ver Deus.
e me remete a Anna Akhmátova quando no poema “Terceira” diz
Uma outra mulher ocupou
o lugar especialmente reservado para mim
e usa o meu nome
deixando para mim só o apelido, com o qual
fiz provavelmente, tudo o que havia para ser feito.[2]
A epígrafe de Clarice Lispector, grande paixão literária de Fernando, nos indexa ao momento em que aquela se encontra com a escrita de Katherine Mansfield e afirma, assombrada: “Mas esse livro sou eu!”[3]
Talvez a minha náusea, a minha angústia em começar a ler o livro de Fernando seja a mesma angústia de Clarice frente ao livro de Katherine, seja a mesma angústia de Ulisses/Homero ao atravessar amarrado no mastro o canto das sereias para poder escutá-lo e não se suicidar, talvez seja a mesma angústia de O lobo da estepe, de Hermann Hesse, nas vésperas de seu aniversário.
A profunda convicção de que aquela saída de emergência estava constantemente aberta lhe dava forças, fazia-o sentir a curiosidade de provar seu sentimento até as últimas instâncias. (…) Finalmente, aos quarenta e seis anos de idade, deu com uma ideia feliz, mas não inofensiva, que lhe causava não raro deleite. Fixou a data de seu quinquagésimo aniversário como o dia no qual se permitiria o suicídio. Nesse dia, convencionara consigo mesmo, podia usar a saída de emergência, segundo a disposição que demonstrasse.[4]
O fato de saber que o aniversário de Fernando de Mendonça é no dia 23 de Novembro – dois dias após o meu aniversário – leva a considerar este efeito de real para o qual ele me convida. Para se afastar mais do personagem principal, escolhe que seja do sexo feminino, casada, com uma filhinha de 4 anos, morando em Boa Viagem. Mas Boa Viagem é um bairro da Recife que Fernando habita desde os 18 anos. E Boa Viagem é o bairro em que resido desde 1996. [5]
Começo a ver as ruas do bairro descritas por Fernando, sinto o aroma da praia, as cores do quiosque onde Irene bebe a sua água de côco e conhece o Homem sem nome, o Homem com o H maiúsculo de Hugo e Helena. O hotel se parece com um hotel recém construído no final de Boa Viagem, já no bairro do Pina, e posso sentir a textura do carpete do corredor para o quarto de hotel onde Irene “passa” entre aspas o final de semana, porque ela não está lá, está de passagem, assim feito eu estou de passagem pelas páginas do livro de Fernando. Mas nunca mais Irene será a mesma, nunca mais eu serei a mesma, nunca mais alguém será a mesma pessoa após se esbarrar, se encontrar com tamanha violência com sua pergunta original, quando a pergunta e a resposta coexistem, coabitam o mesmo não-lugar, o mesmo não-tempo do Mito pessoal. [6]
“Irene sabia”, afirma o livro que leio. A personagem que é desestabilizada pela leitura de um livro que está editorando sabia que se encontrara com seu Mito pessoal, que havia sido assombrada por seu Duplo. E, assim feito Narciso, encontra-se paralisada com sua própria imagem no espelho das águas, no espelho das páginas escritas por Fernando de Mendonça encontra-se a resposta para a pergunta da leitora que escreve, para a escritora que lê o que não saberia escrever porque guardado no mais profundo âmago, que somente um bom livro pode trazer à tona.
– (…) Mas, pela primeira vez, sinto que esbarro em algo realmente grande. Sabe estes livros que nos marcam de um jeito especial? Estes que parecem ter vindo com um remetente para nós? Estou até assustada com a pertinência deste para mim.
– Conte-me algum dos contos. O que mais gostou.
– Acho que não consigo. Não é apenas pelo que acontece nele. Vai mais fundo. E aqui eu sei que não estou confundindo gosto com costume, pois já os li, reli, e não me acostumei a eles.
– Aos melhores livros, a gente não se acostuma, mas sobrevive.[7]
– Fernando de Mendonça me assombra!
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* Fernando de Mendonça é escritor, crítico cinematográfico, cantor de Música Sacra. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, lançou o seu primeiro livro em 2012, A Modernidade em Diálogo: o fluir das artes em ‘Água Viva‘, resultado da pesquisa premiada como melhor dissertação do ano pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, linha de pesquisa Intersemiose. Um Detalhe em H, 2012, é seu primeiro livro de ficção e é lançado em Agosto de 2013. 23 de Novembro, 2014, promete ser a sequência de uma “escrita intersemiótica” de Fernando de Mendonça até o infinito… Contato: [email protected]
** Patricia Gonçalves Tenório é escritora de poemas, contos e romances desde 2004, tem 8 livros publicados e é mestranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco, linha de pesquisa Intersemiose, com o projeto O retrato de Dorian Gray: um romance indicial, agostiniano e prefigural, sob a orientação da Prof. Dra. Maria do Carmo Nino. Contatos: www.patriciatenorio.com.br e [email protected]
(1) MENDONÇA, Fernando de. Um Detalhe em H. Recife: Grupo Paés, 2012. Veja também: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=4809
(2) AKHMÁTOVA, Anna. “Terceira” in Antologia Poética. Seleção, tradução, apresentação e notas: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 126.
(3) LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a Viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 22.
(4) HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Tradução e prefácio de Ivo Barroso. 29ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 60.
(5) Cecília de Almeida Salles em Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística, 3ª ed. revista, São Paulo: EDUC, 2008, p. 25, nos fala que a “obra não é, mas vai se tornando, ao longo de um processo que envolve uma rede complexa de acontecimentos”. Esse “efeito de real” provocado pela leitura de 23 de Novembro teria a ver com as coincidências biográficas entre o livro e a leitora, mas, principalmente, com o pacto bem sucedido d‘O Jogo do Texto’ de Wolfgang Iser (em A literatura e o leitor: textos de estética da recepção, Tradução e Organização: Luís da Costa Lima, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 108), quando a manutenção do movimento do jogo ficcional com a não tomada de decisões adia o seu final.
(6) Segundo André Jolles em Formas Simples: Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste, Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, 1976, p. 88, quando “o universo se cria assim para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar a Forma a que chamamos Mito”.
(7) MENDONÇA, Fernando de. 23 de Novembro. Recife: Grupo Paés, 2014, p. 60.
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