Maria-Clara23

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)

            Mais uma vez o mundo se defronta com a tragédia de barcos que transportam migrantes africanos naufragando e ceifando vidas no Mar Mediterrâneo.  Não é de hoje que isso acontece.  O Papa Francisco praticamente iniciou seu pontificado falando, em Lampedusa, contra essas sucessivas desgraças que parecem não ter fim.

            As estimativas dizem que são quase 1.600 os mortos no Mediterrâneo apenas neste ano de 2015. Já em 2014 foram 3.200. Em outubro de 2013, morreram em um naufrágio perto de Lampedusa 366 pessoas, e os políticos e autoridades – sobretudo após o discurso do Papa Francisco –prometeram: “Não acontecerá mais”.

            Agora nos vemos diante de nova tragédia: entre 700 e 950 pessoas afogadas.  Números ainda incertos, total desconhecimento sobre a identidade dos mortas; de alguns não se sabe sequer o país de origem.  Sabemos apenas que estavam amontoados em um barco pesqueiro, de bandeira egípcia, e que a maioria morreu. O barco teria partido do Egito para a Líbia. E perto de Zuaru embarcaram entre 700 e 950 migrantes.  Entre eles, 200 mulheres e entre 40 e 50 crianças.

            Transportar migrantes passou a ser um bom negócio para alguns: para o armador, um traficante que por cada passageiro recebe mais ou menos 1.600 dólares americanos. Trata-se, sim, de um traficante de seres humanos que enriquece graças a quem foge de governos ditatoriais, de situações de guerra, da miséria e da fome.  O fugitivo escapa para sobreviver, por querer viver.  Não o faz por decisão livre.  É forçado a isso.  Não tem outra escolha.

            Porém, este traficante não é senão o último elo de uma longa cadeia.  Para atingir a costa líbia, o migrante deve atravessar meio continente.  Necessita esconder-se, encontrar pontos de apoio, confiar em guias, quase sempre corruptos, prontos a vendê-lo ao que fizer melhor oferta, muitas vezes com a colaboração da polícia e de militares.  Para libertá-lo, seus familiares, se o estiverem esperando no destino ao qual quer chegar, devem desembolsar somas elevadas para que não o matem.

           Na Líbia, muitas vezes é preso ou então cai em mãos de bandos armados.  E, quando isso acontece, a sequência não muda muito.  Os carcereiros distribuem pouco alimento e o estupro é frequente e regular.  Para serem libertados, há que pagar.

            Após esta última tragédia, a o mundo reage indignado.  Que promessas serão feitas desta vez?  Menciona-se a difícil situação da Líbia, onde se torna impossível atracar os barcos, encontrar um interlocutor confiável. Mas há pouca esperança de uma solução honesta e consistente.

            O Mar Mediterrâneo tornou-se o holocausto da era moderna.  Como no terrível genocídio da Shoa, todos sabiam mas fingiam não saber.  Todos que poderiam fazer algo para impedir, voltaram-se para outro lado.  E as vítimas se viram sozinhas diante de seu cruel e trágico destino.

            A onda de migrações da África para a Europa não para.  No primeiro trimestre deste ano, 57.000 imigrantes ilegais chegaram à Europa  A cifra representa o triplo se comparada com o mesmo período de 2014.

            Ao que tudo indica, a onda migratória só tende a aumentar.  E se providências não forem tomadas, o Mare Nostrum dos romanos continuará a ser a sepultura de milhares de vidas humanas.

            Enquanto todas essas vidas jazem sepultadas sob a água, nossa consciência é chamada a despertar e a identificar-se com todos que, anônimos, fogem de situações de morte para encontrar vida … e acabam encontrando uma morte estúpida e cruel nas águas salgadas do Mediterrâneo.

            Deus, o primeiro migrante, que “saiu” de suas prerrogativas divinas para assumir nossa mortalidade e fragilidade, nos inspire sobre o que fazer para ajudar esses irmãos e superar essa situação.  Somos todos migrantes, pois vivemos de passagem, caminhando, de um lugar para outro.  Somos nós que corremos perigo, somos nós que fugimos das ditaduras e da fome.  Somos nós que mergulhamos sem volta nas águas do mar.

            Que a tragédia submersa, que lança sua sombra macabra sobre a Europa, possa encontrar uma solução duradoura e consistente.

 A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)

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