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Grupo Caçuá, do ponto de cultura Olha o Chico, de Piaçabuçu, em Alagoas, e o Bongar, de Pernambuco, juntaram forças para resgatar arte de mestres griôs

Analfabeto, iletrado e sem conhecimento suficiente para ensinar nada. Quem não conhece Cícero Lino, pode até acreditar. Porque assim ele se apresenta aos desavisados que se aproximam dos muros verdes de sua casa.

Estamos no centro de Piaçabuçu, um pequeno município na foz do rio São Francisco em Alagoas, a 140 km de Maceió e 400 km do Recife, pelo litoral. A exemplo de outras cidades abraçadas pelo rio, não é apenas o cotidiano das pessoas que depende das águas. Aqui, os sons, a poesia e as histórias estão diretamente ligadas à onipresença do Velho Chico.

O jeito de se apresentar não é falsa modéstia de Cícero Lino. Apenas fruto da curiosa trajetória deste simpático mestre pifeiro, natural de um sítio na fazenda Gameleira, distrito de Penedo.

Aos 65 anos de idade, dos quais os últimos 19 em Piaçabuçu, Cícero Lino consegue “tirar” som de qualquer pífano que chegue às mãos. Certa vez, a pedidos, ele mesmo fez dois instrumentos usando apenas cano PVC. E os guarda com carinho até hoje, junto aos cadernos onde escreve as letras de suas próprias canções, apenas com o português “ouvido”.
Poesia certa por linhas tortas. De quem estudou por apenas quatro meses alternados. “Para cada dia que conseguia ir à aula depois do trabalho na roça, eu fazia uma marca na parede de casa. Quando a professora foi embora e não mais voltou, contei e havia 120 tracinhos na parede”, conta.

São os mesmos ouvidos pelos quais Cícero encantou-se com o pife, ainda garoto, no sítio. De tanto ouvir os tocadores da região, ele aproveitou um descuido deles e pegou escondido um dos pífanos deixados sob a mesa.

Em poucos minutos, escondido debaixo da mesa, mediu com as próprias mãos tamanho, diâmetro, comprimento e distância entre cada sopro. Correu para casa com tudo na memória e fez seu primeiro pífano. “O resultado foi um desastre. Fiquei horas soprando e não saiu nada…”, recorda, aos risos. Foram dois longos dias, tentativas e erros, até conseguir o primeiro som. E depois não sabia mais o que fazer, sem um mestre para ensiná-lo, sem professor, sem um guia.

A descoberta do talento foi por acaso. Por conta do trabalho na roça, Cícero passou anos sem tocar. Às vezes, treinava sozinho em casa por diversão. Certo dia, já morando em Piaçabuçu, um desesperado produtor de Maceió procurava alguém que tocasse pífano na região, pois o famoso pifeiro da banda caiu doente e faltavam poucas horas para o show. Ninguém conhecia. Até que o produtor viu uma criança sentada na calçada, dizendo baixinho “o pai sabe… o pai sabe…”

A criança em questão era ninguém menos que Cecília Lino, hoje formada e casada em Maceió, filha de Cícero. Com aquele “o pai sabe”, a vida de Cícero mudou. “Eu nunca havia tocado em público, suei frio. Claro, foi um desastre. Mas os tocadores da época gostaram do sopro, eu acho… depois convidaram para praticar com eles. E o resto é história”, relembra.
Cícero Lino, um mestre do pife sem mestre, não é exatamente um desconhecido. Ao menos, não hoje e não depois de 2003, quando ganhou o mundo por conta de sua pequena participação no filme Deus é Brasileiro, de Cacá Diegues, com filmagens na região de Piaçabuçu.

A arte de Cícero, contudo, é uma das inúmeras expressões culturais carregadas por gerações pelos mestres griôs de Alagoas e, cada vez mais, esquecidas pelos mais jovens. Aparentemente desconhecidos para as massas, vez por outra ganham destaque graças a projetos de divulgação e, sobretudo, do empenho pessoal de pequenos grupos preocupados em manter as tradições vivas.

Grupos como o Caçuá, atualmente gerenciando o ponto de cultura Olha o Chico, em Piaçabuçu; e o Bongar, de Pernambuco, vindo do quilombola Xambá, em Olinda. Cientes de que a sonoridade do São Francisco, embora tão próxima de nós aqui em Pernambuco, ainda seja uma incógnita para tanta gente, esses dois grupos resolveram juntar forças. E tentam resgatar tradições esquecidas, recuperar sons e artes de mestres griôs como Pagode, Manoel Correia, Dona Lurdes, Ferrete, entre tantos outros, entre quase 30 mestres griôs somente no entorno de Piaçabuçu.

Desde 2001, o Bongar desenvolve um trabalho musical e artístico com jovens da comunidade. Jasiel Martins e Guitinho da Xambá, representantes do Caçuá e do Bongar, respectivamente, se conheceram em São Cristóvão (Sergipe) durante um festival de música.

A experiência mútua entre os dois grupos – e os dois estados – ocorre com a vivência de experiências de seus habitantes, desde o ritual da pesca, da colheita, do amassar o barro para construção de casas por meio de coco de roda, do plantio das raízes, e evidentemente as histórias de vida e as canções.

Hoje, eles se apresentam em Piaçabuçu e, domingo, no teatro Sete de Setembro, em Penedo. No dia 5 de abril, uma pequena parte deste som do São Francisco, integrado à batida olindense, poderá ser conferido no auditório da Livraria Cultura, às 17h, no Recife. Quando finalmente Bongar e Caçuá vão colocar em prática os ensaios, pesquisas e convivências dos últimos meses com os mestres griôs de Alagoas.

Uma oportunidade para conhecer novos ritmos e novas prosas destes mestres griôs que, debaixo de um sol escaldante em Piaçabuçu, parecem incansáveis em cantar suas histórias e trajetórias. Saiba mais em www.myspace.com/grupobongar

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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