teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Brejo da Madre de Deus é uma obscura cidade do agreste pernambucano. Clima seco e 35 mil habitantes. Casas azulejadas entre pedras e vegetação rasteira. No entanto, dentro de menos de duas semanas, o brejo que tem o nome da Mãe de Deus será mais uma vez o lugar para onde convergirá uma peregrinação de 200 mil pessoas. Ali acontecerá, na cidade cenográfica de Nova Jerusalém, a encenação dos três dias que uma parte considerável da humanidade considera o apogeu de sua história: a Paixão de Jesus Cristo.
Mais de 2000 anos se passaram, o mundo mudou vertiginosa e radicalmente. Porém, a atração exercida por esse obscuro Galileu permanece de forma impressionante e inegável. A pequena cidade pernambucana será, mais uma vez, cenário do início da trajetória de Jesus de Nazaré, em Jerusalém. Cidade santa para o judaísmo, centro da religião, ali estavam situados o templo, o Sinédrio e as instituições mais importantes da Palestina daquele tempo.
O povo de Israel vê em Jerusalém uma cidade eleita por Deus, o qual em seu monte Sião erige novo Sinai, onde uma nova Lei é dada e recebida. Lugar da manifestação definitiva da glória divina e meta da esperança escatológica, Jerusalém acolhia os israelitas peregrinos que iam oferecer sacrifícios em seu templo, olhando desejosos para os tempos messiânicos, quando todas as tribos e nações ali se reuniriam.
Por isso o salmista aclama Jerusalém como a noiva do Senhor, da qual se anuncia um glorioso destino: ser o lugar de nascimento de todos os homens, um por um, pois foi o próprio Altíssimo quem a fundou. E o povo exalta sua amada cidade em meio a cantos de júbilo e alegres danças: “Todas as minhas fontes se acham em ti.” .
A primeira comunidade cristã, nascida no seio do judaísmo, narra a vida de Jesus de Nazaré, o carpinteiro Galileu que fazia milagres, multiplicava pães, amava pobres e crianças, deixava-se tocar por mulheres e leprosos e comia com publicanos e pecadores, como uma subida até Jerusalém. Subida que se intensifica a partir do momento em que o próprio Jesus toma o caminho da cidade santa não como rei glorioso, mas como profeta e servidor destinado a sofrer e morrer pela salvação do povo.
A entrada de Jesus na cidade se faz de forma humilde e pobre. Pois, apesar da aclamação que o saúda, Aquele que vem caminha ao encontro da morte e não da glória. Sobre a cidade que seria o lugar de seu martírio, Jesus chora de frustrado desejo de reunir todos os seus filhos “como uma galinha abriga os pintinhos sob suas asas”. E o drama que ali acontecerá dentro de poucos dias vai confirmar a tradição de que “não convém que um profeta morra fora de Jerusalém.”
Como toda realidade humana, Jerusalém se revelará santa mas também pecadora. E sua destruição por volta do ano 70 é por muitos interpretada em coerência com as dores que deveriam presidir os tempos messiânicos. No entanto, outra interpretação aconteceu com igual força e foi acolhida por uma parte da humanidade. A Cidade Santa, a Nova Jerusalém, não será mais uma cidade edificada com pedras e tijolos, mas o corpo humano, no corpo de Jesus que sofreu sua Paixão fora de suas portas.
E por isso, até hoje, e sempre e para sempre, se pode continuar entoando o salmo e dizendo: “Em ti nossas fontes todas. Em ti todo homem nasceu.” Pois o que nasce sempre de novo em Jerusalém é a esperança da humanidade em que o amor é mais forte do que a morte e a convicção de que os conflitos acontecem mas não aniquilam a criação de Deus e sim a fazem nascer, renascer.
E por isso Jerusalém está presente em todo lugar. No Oriente Médio e também em Brejo da Mãe de Deus, onde uma vez mais, durante a Semana Santa, a multidão contemplará a Paixão do Galileu que amou até o fim e em quem a comunidade reconheceu o Filho de Deus. Seja qual for nossa fé, o sopro singular que vem de Jerusalém nos diz que por mais obscura e aterrorizante que pareça a realidade, há um lugar, não geográfico, mas Transcendente, onde estão todas as nossas fontes todas e onde todo homem nasce e re-nasce a cada dia.
Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.