teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio (*)
O Dia Internacional da Poesia foi comemorado sábado, 21 de março. Dia de celebrar essa que é louca e livre, louca porque livre, liberta no exercício da sua loucura que vislumbra beleza onde outros só veem cinza e rotineiro cotidiano.
Poesia vem do grego poíesis, que significa ‘ação de fazer algo’. Poesia, portanto, é práxis, apesar de ser a mais gratuita das práxis. Entre as suas inúmeras definições, o Aurélio nos fornece uma que nos interessa de perto: entusiasmo criador, inspiração.
O Houaiss reafirma e reenfatiza a definição Aureliana: semelhante no latim como em grego, poesia é em latim: poésis,is ‘poesia, obra poética, obra em verso’, assim como no grego: poiésis,eós ‘criação; fabricação, confecção; obra poética, poema, poesia’.
Arte e técnica de exprimir em verso uma determinada visão de mundo, a poesia tem sido, através dos tempos, aliada incontestável e companheira inseparável da beleza, do espírito, da inspiração. Da inspiração nos dizem a Fisiologia e a Bíblia, que tem tudo a ver com o ar em nossos pulmões. Esse ar sem o qual não se vive, diz a Bíblia ser ele semelhante ao Espírito de Deus, o qual leva e traz a vida, sem se saber de onde vem nem para onde vai (cf. Jo 3, 1 ss).
Sob a força da inspiração, os profetas disseram com boca humana as palavras divinas, os hagiógrafos escreveram nos textos sagrados o que Deus desejava que escrevessem. É o mesmo Espírito que enche de inspiração o poeta, para que passeie pelas vias da beleza e diga o que vê e o que sente em versos e palavras. Inspirada é a profecia do profeta nele derramada pelo Espírito de Deus que o possui, exaltando-o e enchendo-o de entusiasmo. Inspirada é a poesia do poeta, que seduz e arrebata corações e mentes, enlevando o ser humano no indizível que ousa dizer-se e no inefável que se atreve a expressar-se.
Por meio da palavra, escritores sagrados e poetas ultrapassaram o suporte da letra e adentraram um sistema de signos e ritmos, que perpassa toda a história da humanidade. Inúmeras civilizações, desde a grega antiga à escandinava, a francesa e a inglesa, produziram importantes tradições orais poéticas. Inclusive extensos poemas narrativos como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, as sagas islandesas e o Beowulf anglo-saxônico foram, presumivelmente, cantados ou entoados por rapsodos e bardos profissionais, séculos antes de terem sido postos por escrito.
Para que possa abranger essas e outras obras verbais, é útil considerar a poesia arte verbal e inspirada. O poeta, artesão das palavras, receptor e tradutor da inspiração, deixa em aberto a questão sobre se a linguagem é escrita ou falada e derrama pelo mundo a identidade mais profunda da realidade e das coisas feita verso, ritmo, imagem e som.
Sendo arte, no entanto, a poesia não é distante da vida. Pois na verdade, a emula, a imita, a mimetiza criativamente. A poesia é um meio de reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida, tal como a pintura reproduz ou recria certas figuras ou cenas da vida em contornos e cores.
Porém, ao mesmo tempo em que imita a vida, a poesia a reinterpreta e recria. Na poesia, a material-prima, que é o ser humano, a vida sobre a face da terra, é remodelada e recriada até ser transformada na obra poética, em versos e palavras, que se alternam e expressam o que o coração sente e o que faz o espírito vibrar.
Por isso, poesia e Escritura Sagrada, poesia e teologia encontram sua fonte na inspiração que vem de mais além, cujo segredo é desvendado progressivamente aos seres humanos que se dispõem a tratar mais intimamente com o mistério da vida gratuitamente doada pelo Criador a suas criaturas.
Salve Dia Internacional da Poesia! Salve que de ti temos necessidade…e muita! De ti vivemos e sem ti apenas sobrevivemos. O trabalho sem ti é escravidão. A religião sem ti é conjunto de normas e definições que não consegue mover os corações humanos. Na gratuidade dos versos do poeta, inspirado e possuído pela musa, é o próprio Criador que penetra em sua criação dando-lhe flexibilidade e sopro e fazendo acontecer no mundo o milagre do amor. A poesia pode salvar-nos…desde que não nos deixemos sufocar por sua ausência e desde que não a consideremos inutilidade ineficaz que para nada serve a não ser para ser inapelavelmente descartada.
Pois, como diz a poeta Adélia Prado:
A poesia me salvará….
Não falo aos quatro ventos
porque temo os doutores, a excomunhão
e o escândalo dos fracos. A Deus não temo.
Que outra coisa ela é senão Sua Face atingida
da brutalidade das coisas?[1] <#_ftn1>
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[1] <#_ftnref1> Guia, Adélia PRADO. Poesia reunida. 4ª ed. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 61
(*) Maria Clara Bingemer é autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). entre outros livros.