Toda pessoa, religiosa ou não, é ferida por uma carência. No mais íntimo do seu ser, se insinua o desejo de algo indefinível e que a própria pessoa não traduz. De um lado, se pensa na consciência da própria fragilidade e, do outro, não há como negar: o coração humano permanece inquieto em busca de uma espécie de infinitude. De fato, muita gente procura expressar ou saciar esta sede na fé, ou em algum grupo religioso. Na história, os grandes líderes espirituais se consagraram a responder a este anseio da humanidade por uma plenitude nunca alcançada. Muitas outras pessoas preferem expressar sua busca através de uma vida ética e baseada na solidariedade.
Jesus de Nazaré consagrou sua vida a fazer destes valores maiores da humanidade os sinais do que ele chamava “o reinado de Deus”, mesmo fora do âmbito religioso. O templo de Deus é o ser humano e o mais sagrado da vida é o amor-solidariedade pelo qual ele deu a vida.
Nesta próxima semana, os cristãos celebram a Semana Santa. Quem não é de Igreja pode se espantar com a linguagem ainda violenta com a qual a tradição interpreta a paixão de Jesus. Ainda se escuta que é o sangue de Cristo que salva e que o sacrifício dele na cruz foi necessário e bom para a salvação do pecado. É uma linguagem que isola a paixão do resto da vida de Jesus e a restringe à violência e ao seu valor no plano moral. Como diz o teólogo Jon Sobrino: “toda a vida de Jesus, tudo o que ele fez, disse, todos os seus conflitos e sua fidelidade ao projeto divino da solidariedade é que salva a humanidade da sua mediocridade e dá o seu Espírito a toda pessoa que quer continuar este caminho”. Leonardo Boff completa: “O que é redentor em Jesus não é propriamente a cruz, nem o sangue, nem a morte, tomados em si mesmos. Mas é a sua atitude de amor, entrega e de perdão”.
A morte na cruz foi arquitetada pelas autoridades religiosas judaicas que não suportaram sua profecia e a execução foi decidida e posta em prática pelos romanos que tratavam com a cruz os escravos rebeldes. Nada tem de santo, nem de positivo. Não foi do agrado de Deus, que, por outro lado, acolheu a fidelidade do Filho e sofreu com ele o suplício de uma morte violenta, fruto do mal e da iniqüidade do mundo.
Esta rejeição ao amor e à solidariedade se expressou daquele modo no tempo de Jesus e se encarna, hoje, em mil cruzes que as pessoas preparam para outras pessoas humanas, de modo que, no mundo, continuam a existir milhões de crucificados. Cada pessoa, vítima do desamor, do egoísmo e da crueldade do mundo, assim como das discriminações de todos os tipos, pende de uma cruz que recorda e atualiza a cruz de Jesus.
Esta nos faz rever nossa imagem de Deus. Se Deus é amor, é porque assume o sofrimento da humanidade. Não intervém diretamente na história, mas seu Espírito inspira e dá força aos que trabalham pela paz, pela justiça e pela transformação deste mundo.
A Semana Santa, com seus ritos antigos e suas práticas tradicionais recorda a entrega de Jesus, não para retirá-la da história e transportá-la para o nível de um acontecimento transcendente e sim para convidar todos os cristãos e não cristãos ao seguimento da proposta de Jesus e fazer de sua vida uma existência consagrada à justiça, ao amor e à solidariedade.
(*) Monge beneditino, teólogo e escritor.