Ex-Director do INETI* (Coimbra)
Escritor: horta.silva @sapo.pt

Carlos Paredes perseguindo a esteira de seu pai (Artur Paredes) acaba por atingir, mais tarde, patamares de qualidade ab initium impensáveis. Poder-se-á dizer, sem receios, que a Amália esteve para o fado, como Carlos Paredes esteve para a guitarra. A crescente melhoria das guitarradas deve-se não só à formação musical cada vez mais elaborada de uns quantos guitarristas, mas também à evolução operada na construção dos instrumentos. Artur Paredes e, mais tarde, Carlos Paredes, trabalhando com os fabricantes Grácio, contribuem, de sobremaneira, para alcançar níveis de construção instrumental de elevadíssima qualidade. Prosseguindo o estilo de Coimbra, Carlos Paredes consegue obter novas posições e sonoridades de tal modo refinadas que catapultam a guitarra portuguesa para um plano de instrumento de concerto, aceite em géneros musicais classificados de eruditos. Pedro Caldeira Cabral é um musicólogo com uma carreira multifacetada que não tem raízes nem práticas ligadas aos estilos de Coimbra ou de Lisboa. Desde os finais da década de sessenta e parte da década de setenta, Caldeira Cabral fez um trabalho notável de investigação e de composição no âmbito géneros musicais típicos da Europa Mediterrânica e, como intérprete, foi ao ponto de incluir no seu repertório, transcrições de obras de Bach, de Weiss e de Scarlatti, dando concertos num vasto número países.

Tal como os cantores, os guitarristas de Coimbra, que guindaram as guitarradas a patamares elevados, foram amadores, tocando quase todos de ouvido. Encontram-se aposentados da vida activa, na qual desempenharam cargos na docência, medicina, direito, ciências, serviços e até na política. Entre outros, Jorge Tuna, que vive em Lisboa, ainda mantém uma actividade criativa digna de nota. Entre os poucos guitarristas actuando e tocando em Coimbra, merecem distinção José dos Santos Paulo, Jorge Gomes e Paulo Soares que estão ligados, respectivamente, ao Conservatório, à Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra e ao Orfeão Académico de Coimbra. Do trabalho desenvolvido por estes guitarristas sobressai o aspecto pedagógico que tem dado lugar a possíveis novos talentos. José Paulo, ao transcrever para pauta variações e fados desde os primórdios de Artur Paredes, está a construir uma abordagem diferente e relevante da temática em questão. Por outro lado, como produto daquele trabalho pedagógico destaca-se, a meu ver, Rui Vinagre que, mantendo o pendor do estilo coimbrão, dá mostras de querer prosseguir explorando o entrosamento das suas variações com trechos de piano, contrabaixo e percussão.

Os músicos ligados ao estilo de Lisboa são muitos e, num sentido lato, são profissionais, destacando-se nos tempos correntes um escol de notáveis tais como Fontes Rocha, António Chainho, Mário Pacheco, Manuel Mendes, Carlos Gonçalves, Paulo Parreira e Ricardo Rocha. De qualquer modo, é preciso dizer-se, sem mágoa e muito menos equimose de ressentimento, que os estilos inicialmente inconfundíveis de Coimbra e Lisboa começaram a emulsionar-se com a solvência da academia de Coimbra nos tempos modernos. As guitarras formato de Coimbra passaram a conviver cada vez melhor com a nova vaga de instrumentistas de Lisboa, a pontos de não se poder mais agrilhoar a evolução presente a um só estilo. E, neste manancial de novidade verdejante, fertilizado pela sabedoria da convivência, é salutar e reconfortante ouvir Fontes Rocha e Ricardo Rocha a tocarem temas como “O Góis, o Zeca e Outros Amigos Também” juntamente com “Evocações de Armandinho” e “Mário Pacheco a tocar “Canto da Sereia Encantada” juntamente com “Variações em Torno de Armandinho”.

Recordo-me, vivamente, embora tenha sido há muitos anos, de ver o Jorge Tuna a tocar, ali bem a meu lado, as suas variações em Lá Menor e em Mi Menor, extraindo sequências melódicas ungidas de um vibrado impressionista, usando o indicador erecto e o polegar encurvado, que faziam saltar da guitarra, a um ritmo ondulante, arranjos que ecoavam e desaguavam, sem tropeções, numa toada quase sempre vigorosa que emergia, com fulgor, da veia artística de um futuro e distinto Professor Catedrático de Cardiologia. Muitos anos mais tarde, tive o privilégio de ver, nas mesmas condições, António Chainho interpretando variações sobre o seu Alentejo, tratando a guitarra com um esmero amimado e sereno, de indicador e polegar encurvados, que libertavam a sequência musical à maneira da chuva mansinha que, ao cair, dá tonalidade verdejante às terras castanhas e xistosas de S. Francisco da Serra, onde se fez gente. E como se isto não bastasse, Chainho dava-se, com comprazimento, a enlevos de pormenor, erguendo a guitarra do colo, sempre que pretendia que as notas se libertassem e ecoassem na plenitude da capacidade vibratória da caixa de ressonância.

Quando fiz a crónica sobre o fado, lembro-me de ter escrito que, depois de Amália Rodrigues nos deixar, Mariza era a nova diva do fado. Contudo, entre tantos e tão excelentes guitarristas, que hoje temos entre nós, confesso que não me atrevo a designar quenquer que seja, para ocupar o lugar deixado por Carlos Paredes, que uns quantos teimam em querer continuar a colar, de uma forma emotivamente barroca e desajustada no tempo, exclusivamente, ao estilo de Coimbra. De modo sibilino, citar o nome de Ricardo Rocha não vale mais do que a equívoca materialização de uma forma embaciada de instinto previsional. Carlos Paredes, que fez viajar a guitarra portuguesa por todo o mundo, tal como a Amália fez viajar o fado, pisando salas como a Ópera de Frankfurt, Olympia de Paris, Ópera de Sydney, Rockfeller Center e Shakespeare Theatre (E.U.A), era dotado de uma inspiração e de uma técnica de tal modo enlevadas, a pontos de se poder afirmar que na sua música nada faltava e nada era supérfluo, mesmo quando improvisava. E por me ter agarrado ao papel de Alain Oulman, quando recordei a evolução de Amália Rodrigues e do fado de Lisboa, me sirvo também, agora, das suas palavras em relação a este grande guitarrista «…a música de Carlos Paredes exprime, a meu ver, mais do que nenhuma outra, a terra e as gentes de Portugal. Como acontece com toda a grande arte, esta música tem, na sua essência, a marca da intemporalidade…»

Recordando as composições musicais de Carlos Paredes (nomeadamente as tocadas no concerto dado na Ópera de Frankfurt e a banda sonora do filme “Os Verdes Anos” e também aquela memorial noite de guitarradas na Aula Magna da Universidade de Lisboa (Fontes Rocha, Mário Pacheco, Ricardo Rocha e outros) – ocasiões etéreas, durante as quais a música toma conta das emoções passantes, libertando o ouvinte do efeito da gravidade – me despeço convicto de que o futuro das guitarradas é mais do que previsível, independentemente do estilo que, de momento, mais agradar ao leitor (Coimbra ou Lisboa).

* INETI – Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial

Guitarristas de Lisboa (em cima) e de Coimbra (em baixo)

Lisboa: Fontes Rocha (à esquerda) e António Chainho (à direita) dois grandes profissionais, ainda no activo, senhores de um vasto repertório, com inúmeros discos e espectáculos no seu currículo, não só como acompanhantes de fadistas célebres, mas também a solo.

Coimbra: Jorge Tuna (à esquerda) e Octávio Sérgio (à direita); o primeiro, médico cardiologista e professor da universidade de Lisboa, com muitos espectáculos e discos e o segundo, licenciado em físico-química e professor do ensino secundário, deu espectáculos em Portugal e no estrangeiro e é autor dos blogs “Guitarra de Coimbra I e II” que têm contribuído para a divulgação da música e das tradições coimbrãs.

Nova Geração de Guitarristas

Em cima: José Paulo (Coimbra) – Além de excelente executante, tem desenvolvido acção pedagógica, escrevendo partituras de variações e de fados de Coimbra.

Em baixo (à esquerda) – Ricardo Rocha, guitarrista de Lisboa neto de Fontes Rocha, é uma das maiores promessas da guitarra portuguesa; (à direita) Rui Vinagre, guitarrista de Coimbra, que tenta afirmar-se incorporando, nos arranjos das guitarradas coimbrãs, acompanhamentos que incluem contrabaixo, percussão e teclas.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]