Vejam só: eu, a língua portuguesa, falada por pelo menos 230 milhões de pessoas de oito países que oficialmente me adotam, estou de roupa nova. Sempre foi assim, de tempos em tempos decidem auto-regular o modo como sou escrita, ou melhor, autorregular. Agora é assim, sabia?
Bom exemplo é o pronome você. Nasceu ‘vossa mercê’, virou ‘vossemecê’, derivou para ‘vosmecê’, reduziu-se a ‘você’, é falado ‘ocê’ ou ‘cê’ (cê vai lá?). Não duvido nada, daqui a pouco só se pronuncia o acento circunflexo…
Oficialmente meu alfabeto passa a ter 26 letras, com a inclusão de k, y e w. Ora, na prática isso já ocorria: km, yang e yin, show etc. Meio kafkiano, não?
Cai a coroa de certas palavras, o velho trema, tão frequente (agora sem trema) na tranquila (idem) sequência (idem) de vocábulos como linguiça. Qüinqüênio, duplamente coroado, agora é quinquênio. Também perco o acento no casal de vogais, conhecido por ditongo, em palavras paroxítonas, como alcateia, androide, boia, colmeia, celuloide.
Confesso que me sinto meio nua… Será paranoia? Ao menos me sobraram os acentos das oxítonas como papéis, heróis e troféu. E o Piauí ficou a salvo, como em toda oxítona terminada por i e u ou seguida de s.
Língua é também uma questão de elegância. Imaginem uma mulher descabelada numa festa em que todas as outras estão bem penteadas! É como me sinto nos vocábulos terminados em eem e oo. Adeus o chapeuzinho em creem, magoo, perdoo, veem (do verbo ver), voo, zoo. Será que abençoo tais mudanças?, pergunta o autor deste texto. Ou ele encara isso com certo enjoo?
Será que os leitores, sem o circunflexo (que belo vocábulo!), distinguirão facilmente o casamento da preposição com o artigo no vocábulo pelo do substantivo pêlo, que agora é pelo, assim pelado? Perdem o acento: pêra e pára. Num texto na nova ortografia, agora vamos ler que a moça gritou no carro para o namorado: “Para! Desço na esquina, seu hálito, de quem comeu pera podre, me dá enjoo”. “Pode descer”, dirá ele. Ela retrucará: “Como você pôde sair de casa sem escovar os dentes?”
Outra exceção é a preposição por e o verbo pôr. Por que será? Mas ao menos uma liberdade resta a quem redige: você pode ou não enchapelar forma quando se referir à vasilha de fazer bolos e escrever: “Qual a forma da fôrma do bolo?” Estará também certíssimo se redigir: “Qual a forma da forma do bolo?”
O hífen, coitado, foi o que mais sofreu nessa reforma ortográfica. Salvou-se frente ao h: super-homem, sobre-humano. Mas dançou quando o prefixo termina diferente do segundo elemento: aeroespacial, antiaéreo, extraescolar. Sobrou o vice: vice-presidente.
Sai de cena o hífen se o prefixo termina em vogal e o resto se inicia com r ou s. Neste caso, duplicam-se tais letras: antissocial, ultrassom, biorritmo. Estranho, né?
Há certas palavras com as quais é preciso cuidado, devido à sua carga ideológica. O hífen permanece para o i não beijar o seu clone: anti-imperialista, anti-inflacionário. Também quando o r ameaça arranhar o seu duplo: inter-racial, super-romântico. Superinteressante, não?
Se o prefixo sub topar com o r, que mantenha distância: sub-região, sub-raça. Pan-americano fica assim mesmo. Quando o prefixo terminar por consoante e o segundo elemento começar por vogal, una tudo: hiperativo, hiperacidez, interestadual.
Porém, mantenha distância se o prefixo for ex, sem, além, pós, pré: além-túmulo, ex-diretor, pós-graduação, pré-vestibular, recém-casado. E sem-terra (mas com muita garra na luta por reforma agrária).
E algo fantástico: o hífen é preservado se o sufixo tiver origem tupi-guarani (olha ele aí): capim-açu, amoré-guaçu. Supõe, evidentemente, que você saiba identificar o vocábulo como derivado do tupi-guarani.
Sei que não sou um idioma fácil. Além da correta ortografia, exijo perfeita sintaxe. E vivo provocando pegadinhas: aluvião, apesar do tom, é substantivo feminino. E imagina um estrangeiro me aprendendo: “Pedro bota e calça e, em seguida, calça a bota”. E manga? De camisa, a fruta, parte do eixo do carro e mais oito significados pelo menos. Banco então nem se fala: de praça, de guardar dinheiro, de areia, de sangue, e do presente do indicativo do verbo bancar.
Para fazer bom uso de mim só há uma receita: leia, leia muito, bons autores. E quanto à minha roupa nova, fique tranqüilo, pois este trema e todas as demais mudanças ortográficas têm (o circunflexo do plural dos verbos ter e vir foram salvos pelo gongo) prazo até 2012 para serem implementadas.
Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.