OS MALÊS E NINA RODRIGUES
Nina Rodrigues no seu livro “Os africanos no Brasil”, tem um capítulo intitulado “Os negros maometanos nos Brasil” onde comenta de forma fundamentada a Revolução Malê de 25 de Janeiro de 1835. Ele reflete de, forma crítica, as observações dos cronistas do século XIX que diziam ser as sublevações de escravos “simples manifestações de sentimentos maus e perversos dos selvagens de pele negra, um estigma que fazia leves todos os outros termos e predicados da mais rubra indignação”. Mas havia também os benevolentes que viam nessas atitudes represálias legítimas e justas de seres brutalizados por senhores desumanos. Mas o terceiro grupo,o dos escritores liberais, nos quais ele se incluía, eram os que enxergavam nas insurreições dos negros “uma revolta nobre de oprimidos contra o roubo de sua liberdade, pela qual reivindicavam, várias vezes, nobres exemplos de bravo heroísmo”.
Nina vai buscar as razões para as revoltas não apenas no momento pontual da escravidão aqui, com sua natural revolta, mas a coloca dentro de um contexto macro, mostrando que o seu real significado histórico tinha suas bases nas transformações étnicas e político-sociais que na época ocorriam no coração da África. Os levantes eram um reflexo e até um pálido esboço, neste lado do Atlântico, daquilo que inundava o sentimento das levas de escravizados vindos através do tráfico, aqui chegando como verdadeiros fragmentos das múltiplas nações negras que eles representavam.A língua era uma condição natural para abrigá-los num círculo inviolável a que ninguém tinha acesso.Mostra ele que muitas descrições ficaram num estudo superficial, retratando apenas explosões de desespero de escravos contra os seus senhores.”Mas elas se ligavam às transformações políticas feitas pelo Islamismo no mundo haussá e o iorubá, sob a direção dos fulos, fulas ou fulbis”.
Eles se estabeleceram no país dos haussás, que Nina cognomina como “belo”,em época anterior ao século XIV e foram eles que nessa região propagaram e difundiram o Islamismo. Mas isso não foi feito sem guerra. Na carta para Sua Majestade (16/07/1607), o sexto Conde de Ponte, Governador da Bahia, já mencionava a primeira insurreição dos negros haussás e dizia:”Esta colônia, pela produção do tabaco (…) importou no ano passado, as embarcações deste tráfico, 8.037 escravos, jejes,haussás e nagôs (etc), nações as mais guerreiras da costa de Leste e nos mais anos há com pouca diferença igual importação, grande parte fica nesta capitania e considerável quantidade nesta capital”.
Mostra Nina que os iorubanos (nagôs), os jejes (ewes), eram importados para o Brasil já há muito tempo. “Mas o valor especial da importação do início do século XIX reside na influência que os fulas e haussás maometanos começavam a exercer sobre eles”. Os haussás eram a nação considerada das mais adiantadas da África Central e as cidades de Kanô e Katsena eram denominadas pelos estudiosos como a “Florença dos haussás”.O Islamismo organizou-se, contrastando com a ignorância e brutalidade dos senhores, e os mestres que pregavam a conversão vieram e ensinaram a ler em árabe os livros do Alcorão, que também eram importados de lá.
Até o chefe de polícia que teve que reprimir a revolução de 1835, Dr. Francisco Gonçalves Martins, depois Visconde de S. Lourenço, pressentiu a importância das crenças religiosas dos haussás nessa luta.Nina cita como pululavam, em Salvador, os lugares de oração dos muçulmanos:” A modesta casa da rua da Alegria, que serve atualmente de Mesquita, tem uma sala interna destinada aos ofícios e atos divinos. Ali se reúnem os malês todas as sextas feiras para a prece ou ‘missa comum’. Duas vezes por ano há um grande jejum de sessenta dias (…). Os atos fúnebres são praticados com toda regularidade pelos alufás nas freguesias”.
E conclui o ilustre médico-antropólogo:”O certo é que a religião tinha sua parte na sublevação e os chefes faziam persuadir aos miseráveis que certos papéis os livrariam da morte , de onde vem encontrar-se nos corpos mortos grandes porções dos ditos e nas vestimentas ricas e esquisitas que figuram pertencer aos chefes, e foram encontradas em algumas buscas”.
Sebastião Heber Vieira Costa. Professor de Antropologia da Uneb, da Cairu e da Faculdade 2 de Julho. Membro da Academia Mater Salvatoris, do IGHB e do Instituto Genealógico