Frei Betto 17 de janeiro de 2009

Findou o ano, mas não a vida. Para quem recebe salários extras e dispõe de condições, paira o risco da voracidade: ceias pantagruélicas, muita cerveja na praia, o churrasco crepitando no sítio ou na fazenda, uma tristeza d’alma quando o corpo entorpece atolado em comidas, como se o lazer se reduzisse a um exercício compulsivo de ingestão e congestão. Como somos exaustivamente iguais!

Nesta virada do ano, vamos pilotar transbordantes carrinhos de supermercados, assistir na TV à retrospectiva dos últimos 12 meses, tostar a pele junto ao mar ou à beira da piscina e acompanhar a afoita alegria dos que foram escolhido prefeito e secretários municipais, enquanto os preteridos se esforçarão para disfarçar seus ressentimentos.

Trafegamos sobre o fio da navalha. De um lado, a qualidade total que, niponicamente, pretende nos ensinar a trabalhar mais por menos, como se devêssemos acompanhar o ritmo dos equipamentos eletrônicos. De seres humanos somos gentilmente reduzidos a peças de engrenagem. Já não se trata apenas de vestir a camisa da empresa, mas de nascer com a pele tatuada com o seu logotipo. De outro, a resistência a tanta pressão consumista, na busca de alternativas para uma qualidade de vida melhor.

Uma alimentação sadia, exercícios aeróbicos, ler os clássicos, praticar a meditação, livrar-se de toda tentação de ostentar bens e participar de alguma causa humanitária.

Enquanto o sistema nos puxa pelo lado de fora – modas, status, funções de poder etc. -, algo mais profundo em nós mesmos nos induz ao lado de dentro: resgatar a capacidade de amar, reaprender a ternura, fitar o semelhante em sua suprema dignidade humana.

Ao contrário dos orientais, somos uma civilização ruidosa. Falamos em cascata, passamos horas ao telefone (executivo é um celular no qual um homem se dependura pela orelha), mantemos ligados a TV, o rádio, o som, como se, perante o silêncio, temêssemos mirar a própria face interior. Claro, o mercado não oferece silêncio porque haveria queda de consumo.

Malha-se o corpo, mas não o espírito. No entanto, a vida ensina que a felicidade jorra da intimidade. Não há outra fonte. Pode haver prazer na apropriação, alegria no encontro, júbilo numa boa surpresa. Porém, felicidade, como profundo deleite do espírito, só na intimidade amorosa, na oração sem imagens e palavras, na contemplação do belo, no acolhimento do ser querido, na entrega ao mistério, na eternização subjetiva de um momento, na poesia de um toque, um gesto, uma palavra que traz em si plenitude. Ausência de desejos; tão-só deixar-se sorver pelo esplendor de uma paz que ora vem como brisa suave, ora sopra como vento forte e assustador.

Tivéssemos um pouco mais de sabedoria, faríamos do réveillon um balanço pessoal, contração e descontração, sístole e diástole, na alegria do novo ano que irrompe e dos novos homens e mulheres que se propõem a não sonegar sentimentos, não blefar com o próximo, não discriminar subalternos, não se omitir da solidariedade às causas sociais.

Quem sabe trocar a festa pela visita às vítimas da Aids, o champanhe por uma cesta básica para a família da faxineira, os fogos de artifício por uma prece em família. Por que seguir os modelos padronizados pela mídia hedonista, se isso não nos enriquece como seres humanos?

No dia 1º, entre tantos discursos de posse, tome posse de si mesmo. Para nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemos, não é preciso retornar ao ventre materno. Basta dar ouvidos à própria intuição, agir com humildade e sintonizar-se com o Transcendente. Na radical disposição de, daqui para frente, não se deixar consumir como um mingau comido pelas bordas.

Frei Betto é autor de “A arte de semear estrelas”.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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