Segunda Parte – Guitarradas

Ex-Director do INETI* (Coimbra)
Escritor: horta.silva @sapo.pt

Se é longa e opaca a origem do fado, tido como expressão musical, bem como a clarificação da importância dos diferentes ramos da respectiva árvore genealógica, não é menos fácil desenhar com clareza o percurso dos caminhos que levaram à génese da guitarra portuguesa. Invasão da península Ibérica pelo berbere Tarik-Ibn-Zyad, el Garb Andaluz, alaúde árabe, cistro europeu, cítara, Renascimento, guitarra inglesa ou instrumento construído em Inglaterra na segunda metade do séc.XVIII. Tal como acontece com o fado, o surgimento da guitarra portuguesa é matéria cativante que, no entanto, extravasa o domínio do presente texto. O mais provável, como acontece com tantos temas análogos, existe uma múltipla influência na criação do instrumento que, hoje, é tipicamente português, e que anda ligado ao fado como a pele anda colada ao corpo. A importância das diferentes influências é matéria para os historiadores, salientando-se, no entanto, que se procurou obter um instrumento de doze cordas, com uma acrescida sonoridade em relação aos demais instrumentos similares da época, instrumento esse que se pretendia que fosse ao encontro dos caprichos emotivos que o Romantismo começava a impor. 1

Certo é que este instrumento musical, inequivocamente caro para a época, entrou em Portugal por mãos endinheiradas por compra a fabricante entendido no assunto e a Inglaterra era do melhor que havia, naquele tempo, relativamente a fabricantes de instrumentos de corda. A colónia inglesa instalada no Douro e o vinho do Porto devem ter feito o resto, pois a guitarra começou por ser um instrumento de salão, que depois se expandiu gradualmente para sul, em primeiro, muito provavelmente para Coimbra e, mais tarde, para Lisboa. Como é que um instrumento de salão vai colar ao fado castiço de Lisboa, de origem popular, é coisa que não bate certo com a endinheirada e snobe vida da colónia britânica ligada ao vinho do Porto, embora possa bater certo com expressões musicais da época do Romantismo, que estiveram na base do fado de Coimbra. Como é que o fado de Lisboa (rapazelho do povo) e a guitarra portuguesa (donzela aristocrática) acabam por casar, é novela assaz inefável, que ainda não mereceu a consideração de um romancista, o que é de estranhar, face à elevadíssima qualidade da literatura portuguesa no seio das Correntes Literárias Contemporâneas, mesmo depois de o Neo-Realismo se ter esgotado. De qualquer modo, a descida tardia da fidalguia aos centros populares da boémia e da prostituição de Lisboa, já anteriormente referida na crónica correspondente ao fado, é uma via a explorar. Certo, é que o fado de Coimbra foi, desde muito cedo, aproveitado pela vida académica, pese a verdade que os dois melhores instrumentistas das décadas de trinta e quarenta do século passado, tenham sido Artur Paredes (bancário) e Flávio Rodrigues da Silva, (barbeiro) que, no entanto, estavam muito ligados à classe estudantil e à velha Alta de Coimbra, convivendo com a alcáçova do saber, onde a velha e emblemática torre foi musa para muitas composições.

Num sentido lato, podemos definir a guitarra portuguesa como um cordofone composto. Existem três tipos de guitarra portuguesa (Porto, Coimbra e Lisboa) mas a guitarra tipo Porto caiu em desuso. A guitarra de Lisboa tem a caixa mais arredondada e mais alta do que a de Coimbra, um braço com 438 mm e a uma voluta que termina em forma de caracol, enquanto a guitarra de Coimbra tem a caixa mais alongada menos alta e um braço com 452 mm encimado por uma voluta coroada em forma de lágrima. Não obstante o braço da guitarra de Coimbra ser mais comprido, existem, em ambos instrumentos, o mesmo número de trastos (pontos). A afinação da guitarra de Lisboa adoptada para o fado faz-se ao lamiré (Ré-Lá-Si-Mi-Lá-Si) no sentido dos graves para os agudos, enquanto na guitarra de Coimbra, a afinação se faz um tom abaixo da guitarra de Lisboa (Dó-Sol-Ré-Lá-Sol-Dó). Pelas características instrumentais apontadas e, pela afinação, o som da guitarra de Lisboa é mais cintilante do que a de Coimbra ganhando esta, em contrapartida, uma sonoridade mais suave e melodiosa, embora mais grave.

Em termos de mediatismo, tal como acontece hoje em dia, os nomes dos cantores sempre tiveram mais ressonância do que os nomes dos músicos acompanhantes, muito embora num estudo mais aprofundado se possa verificar que a abundância de guitarristas durante a segunda metade do séc. XIX a meados do sec. XX já era notória, lembrando-se entre outros, por Lisboa, Petroline, Armando Freire e Júlio Silvano e, por Coimbra, Antero da Veiga, Flávio Rodrigues, Artur Paredes e Afonso de Sousa. A composição musical dos temas lisboetas era manifestamente diferente da dos temas de Coimbra, usando Lisboa um tipo de estrutura na qual eram usadas, com frequência, variantes mais trabalhadas do “caga cão”1 à mistura com trinados, brilhantes e lentos de choradinho, que terminavam com um acelerar crescente da sequência musical até atingir um final vertiginoso que pretendia demonstrar a destreza e exuberância do guitarrista. Os espaços mortos e o compasso eram preenchidos e marcados, de modo exuberante, por um acompanhamento à viola efectuado sob a forma de arpejos bem vincados, conjugados com toques de bordões e, também pela inclusão de momentos intercalares a solo, plenos de beleza, pormenor que emprestava à guitarrada de Lisboa uma diversidade e complementaridade instrumental bem conseguidas. Vale a pena realçar neste aspecto, o papel importantíssimo desempenhado pelo professor Martinho d´Assunção, um dos maiores violistas de sempre que marcou, de forma indelével, não só a sua geração mas também as gerações vindouras. Em contrapartida, no estilo de Coimbra, procurou-se tirar partido das sonoridades específicas das múltiplas posições (notas compostas e dissonantes) que a guitarra de Coimbra confere, sendo o dedilhar brilhante e gemido, típico do estilo de Lisboa, substituído por um dedilhar mais tecnicista, enxertado de apogiaturas, que se repartia, com frequência, por várias cordas, factos que conferiam ao estilo de Coimbra uma execução guitarrística mais elaborada do que a do estilo de Lisboa. Um tanto à maneira lisboeta, muitas variações de Coimbra aceleram o ritmo da dedilhação na parte final da guitarrada, havendo aí um certo equilíbrio estrutural entre os dois tipos de composição. A importância da viola no acompanhamento das variações de Coimbra é minimizada relativamente ao que se passava em Lisboa e a dupla função daquele instrumento no acompanhamento das guitarradas de Lisboa (compasso e preenchimento de pausas a solo) é substituída, em Coimbra, desde muito cedo, pela introdução de um segundo guitarra, facto que relega a viola para uma função mais apagada.

No auge das décadas de cinquenta a setenta, vários são os grupos de guitarras que marcam, quer as gerações de Lisboa, quer as gerações de Coimbra, citando-se entre outros guitarristas de Lisboa, os nomes de Armandinho, José Camarinha, Jaime Santos, José Nunes, Raul Nery e Fontes Rocha e, entre outros guitarristas de Coimbra, António Brojo, António Portugal, Jorge Tuna, Jorge Godinho os irmãos Eduardo Melo e Ernesto Melo, Francisco Filipe Martins e Octávio Sérgio. À parte destes dois conjuntos, é justiça destacar duas figuras que se tornaram célebres no firmamento da guitarra: Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral. (Continua)

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1 Para maior pormenorização recomendam-se os trabalhos de Pedro Caldeira Cabral e de Carlos Paredes.
1 Ver crónica dedicada ao Fado

* INETI – Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial

Guitarras Portuguesas

À esquerda – Guitarra tipo Lisboa
À direita – Guitarra tipo Coimbra

Carlos Paredes (à esquerda) e Pedro Caldeira Cabral (à direita) dois dos grandes vultos da guitarra clássica portuguesa, actuando, “per si” em concertos dados pelo mundo fora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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