Paulo Rebêlo 20 de dezembro de 2008

(www.rebelo.org)

Encontro reúne, em três municípios no Cariri cearense, figuras da cultura popular: do som, do corpo, da oralidade, do sagrado e das mãos

Crato (CE) – Quando sofreu o acidente que lhe tirou o sustento, o pescador José Pereira de Oliveira achou que era o fim de sua vida no mar. Com o laudo médico de invalidez, aposentou-se. Então com 45 anos e sem perspectivas, passava o tempo olhando para sua jangada ancorada na praia de Aquiraz, a 25 km de Fortaleza, hoje um dos principais pontos turísticos do Ceará. E de tanta saudade, surgiu o mestre de mãos hábeis a retalhar, com curiosa precisão, miniaturas perfeitas das jangadas de pesca.
Aos 82 anos, Seu Oliveira vive deste “mar” há 37 e tornou-se uma das figuras mais conhecidas de quem passa por Aquiraz. Cada peça leva um dia inteiro para ficar pronta, vendida a R$ 10. A maioria nem imagina que ele usa apenas uma faca e um pouco de cola como instrumentos de trabalho. Mas hoje ele não está na praia onde nasceu e criou os oito filhos, dos quais apenas a caçula (37) permanece sob o mesmo teto.

Encostado ao canto da parede durante toda a manhãde uma sexta-feira, no Crato Tennis Club, ele sequer levanta o olhar, encabulado diante das pessoas que circulam pelo salão, apressadas, falando alto. Cabisbaixo, o boné cobre seu rosto quase inteiro, enquanto conclui uma nova jangada feita de raiz de timbaúba.

Meio isolado, passa a impressão que poderia ficar ali o dia inteiro, mas não se cansa de responder com animação às perguntas dos curiosos. Só sai quando alguém, literalmente, lhe puxa pelo braço para ir almoçar. “Se não tivesse esta oportunidade, nunca teria saído da minha prainha, não conheceria o Cariri”, lamenta.

Diplomado em 2005 como mestre de cultura popular pelo governo local, Seu Oliveira é apenas um exemplo dentre tantos outros mestres presentes no 4º Encontro de Mestres do Mundo, realizado nas cidades vizinhas de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha durante a última semana de 2 a 6 de dezembro. São três municípios no Cariri cearense, o equivalente ao nosso Sertão “Aqui você vive uma vida que nunca viveu”, sentencia Oliveira, diante de outroscolegas das mais variadas artes. São mestres do som, do corpo, da oralidade, do sagrado e das mãos.

Trocar conhecimentos – O encontro promovido há quatro anos pelo Governo do Ceará e pelo Ministério da Cultura chega a Juazeiro do Norte pela primeira vez. Até o ano passado, tudo ocorria na cidade de Limoeiro do Norte. Em paralelo ao 3º Seminário Nacional de Culturas Populares, os mestres enfrentam o calor escaldante do Cariri e uma estrutura relativamente precária e desorganizada do evento (e da cidade) para compartilhar conhecimento, conversar entre si e fazer a alegria dos pesquisadores presentes. Os acadêmicos perguntam sem parar e as rodas de mestres, realizadas durante as manhãs no Crato, se transformam em verdadeiros debates e descobertas.

Mas o pescador Oliveira não quer saber de debate. Enquanto uma das rodas discute as diferenças conceituais e práticas entre o maracatu de Pernambuco e o do Ceará, ele volta a retalhar sua jangada aqui no Crato, pelo terceiro ano consecutivo. Segue o exemplo da pernambucana Maria de Lourdes Cândido Monteiro, 70, moradora de Juazeiro do Norte.
Ela não lembra onde nasceu em Pernambuco, mas lembra exatamente o por quê de ter começado a criar bonecas e animais de barro, há 38 anos. “Tinha quatro filhos pequenos, morava no sítio. As meninas viam os brinquedos na rua e pediam, mas eu não tinha dinheiro. De noite, aos poucos, comecei a fazer bonecas de barro para minhas filhas. Depois fui fazendo cachorros, pessoas, qualquer coisa”, explica, com a simplicidade típica dos verdadeiros mestres, enquanto termina de colorir uma das bonecas.

Maracatu de religião e tradição

Ele não é militar, mas é capitão-general. Eli Benedito, bisneto de escravos, faz questão de se levantar e se aproximar das pessoas ao redor, antes de começar a falar com sua voz mansa sobre congada, religião, igrejas, tradições populares e candomblé. É pai de “apenas” dez filhos, mas lidera centenas de pessoas da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, representadas por Benedito no encontro.

O título de capitão-general da Irmandade é merecido e reconhecido. Aos 75 anos, mora no Guará (próximo a Brasília) e nasceu em Carmo do Cajuru (MG), onde fica a sede da Irmandade. Se não fosse ele, poucos acreditam que a centenária tradição (curiosamente católica) da festa do Rosário teria a grandiosidade atual. Na Congada de Carmo do Cajuru e na Missa Conga, cujas raízes africanas ele se orgulha, até os padres católicos dançam o dia inteiro nesta festa de fortes fundamentos do candomblé.
Nas rodas de mestres, o mineiro Eli Benedito divide espaço com representantes do maracatu. Levados pela Fundarpe, os maracatus Leão Coroado e Estrela de Ouro de Aliança foram os principais destaques da noite de abertura, em Juazeiro do Norte, no pátio do Memorial Padre Cícero.

A congada deu vez às falas dos mestres do maracatu pernambucano, que ainda ganharam o apoio de Manoel Salustiano, filho de Mestre Salusiano, falecido em agosto de 2008. O sincretismo religioso, a dificuldade de manter as tradições, diferenças entre os maracatus cearense e pernambucano, até mesmo a tecnologia no maracatu, foram alguns dos temas abordados pelos mestres com a costumeira curiosidade de acadêmicos e pesquisadores de cultura popular. Hoje, somente Fortaleza já conta com 10 nações de maracatu, todos com uma batida diferente.

O mestre do Leão Coroado, Afonso Gomes de Aguiar Filho, não foge da religiosidade. “Hoje todo mundo fala em maracatu, mas antes era bem restrito a um caráter mais religioso”, explica. Apesar da fama internacional e carnavelesca do Leão Coroado, Afonso Aguiar garante que o grupo é mais religioso do que de carnaval.

Em meio às explicações, outros mestres exibem suas artes na área externa do clube, para felicidade dos que estiveram presentes e infortúnio da população local, praticamente sem oportunidade de conhecer as atividades. “Pode ter faltado divulgação, não sei, mas esses eventos são assim mesmo”, tenta explicar o produtor cultural Zé Reis, enquanto divulga artefatos do 3º Cortejo do Boi, realizado toda primeira sexta-feira de julho no Maranhão.

Obs: Publicado no Diário de Pernambuco no dia 07.12.2008.

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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